“Sailing on High Seas: Reforming and Enlarging the EU for the 21st Century” surge como uma proposta de bússola, apresentada por doze especialistas franceses e alemães. Laurence Boone e Anna Lührmann, ministros da França e da Alemanha, apresentaram o relatório à margem de um conselho de ministros em Bruxelas, no passado dia 19 de Setembro. O “Grupo dos Doze”, reconhecendo a complexidade de alinhar as visões de diversos Estados-Membros para a UE, recomendam um processo flexível de reforma e alargamento da UE, propondo uma lista de medidas iniciais antes das próximas eleições europeias. As reformas mais substanciais – incluindo os preparativos para a revisão dos tratados – deveriam ser implementadas durante a nova legislatura (2024 a 2029).
No que se refere à gestão do processo de adesão de novos Estados, defende-se a não existência de um procedimento acelerado e a resolução de litígios territoriais. Designadamente no que se refere às condições de adesão, o relatório sublinha que “independentemente de qualquer nova flexibilidade no processo de adesão, o cumprimento dos critérios políticos de adesão e dos princípios da UE é uma condição prévia para a adesão à UE“.Os países em vias de adesão devem também alinhar-se plenamente com a Política Externa e de Segurança Comum da UE, nomeadamente com a sua política de sanções e com os princípios da Carta das Nações Unidas.
Tendo sido anunciado como desenho para preparar o bloco para futuros alargamentos, o documento é, na verdade, uma forma de agitar as águas para a discussão de uma reforma profunda da UE. Apesar de nobres nas suas intenções, a proposta traduz-se em reformas substanciais na governação da UE e algumas das suas recomendações suscitam preocupação quanto à potencial marginalização de certos Estados membros. De acordo com os planos apresentados em Sailing on High Seas, todos os países da UE são iguais, embora alguns, principalmente a Alemanha e a França, sejam mais iguais do que outros.
Rumo a uma UE mais unida ou dividida?
A extensão da votação por maioria qualificada (VMQ) a quase todas as decisões dos Estados-Membros é apresentada como um mecanismo para racionalizar o processo de tomada de decisões da UE. Abolir o requisito da unanimidade nos poucos domínios restantes significaria acabar com a possibilidade de vetar, uma garantia importante pois impede que a UE se transforme discretamente num Estado federal contra a vontade dos seus membros. Além disso, a Política Externa e de Segurança Comum é um domínio sensível. A utilização da votação por maioria qualificada neste domínio pode resultar na ausência de uma política externa unificada, que é crucial à imagem e eficácia da UE a nível mundial.
A unanimidade garante que as decisões são tomadas apenas quando todos os Estados-Membros estão de acordo, protegendo os interesses de cada país individualmente. Isto evita que os Estados-Membros maiores ou mais poderosos imponham a sua vontade aos mais pequenos ou menos influentes, mantendo a equidade na tomada de decisões. O poder de veto no Conselho da UE não é um instrumento maligno, mas uma garantia crucial para a manutenção do Estado de direito a nível da UE. Os argumentos de que a unanimidade é difícil de alcançar e torna o processo de decisão da UE menos eficiente ignoram a lição mais importante que a história nos ensinou: que os procedimentos difíceis e morosos continuam a ser melhores do que colocar demasiado poder nas mãos de muito poucos.
Opções de auto-exclusão
Permitir que os Estados-Membros optem por não participar nos domínios de intervenção que transitem para a VMQ, com determinadas restrições, para evitar uma UE fragmentada, encerra em si um paradoxo curioso. Ao permitir que os Estados-Membros se envolvam de forma selectiva, com o tempo, estas diferenças poderão exacerbar-se, conduzindo não só a divergências políticas, mas também a compromissos diferentes em relação à visão partilhada da União. Em vez de reforçar a unidade, esta abordagem pode, inadvertidamente, estar a lançar as bases para fracturas e incoerências mais profundas no seio da União.
De acordo com as recomendações apresentadas, nem todos os Estados europeus estarão dispostos e/ou poderão aderir à UE num futuro próximo e mesmo alguns dos actuais Estados-Membros poderão preferir formas mais flexíveis de integração. Os peritos recomendam, por conseguinte, que o futuro da integração europeia seja concebido em quatro níveis distintos, cada um com um equilíbrio diferente de direitos e obrigações.
O círculo interno seria constituído pelos países que desejam participar em formas de integração mais profunda. O segundo círculo, a UE, seria constituído por todos os actuais e futuros Estados-Membros que operam no âmbito das actuais competências da União.
Embora as opções de auto-exclusão possam parecer uma solução prática, podem abrir caminho a uma Europa a várias velocidades, em que alguns países se integram mais profunda e rapidamente do que outros, o que poderá conduzir a divisões internas e à fragmentação.
Representação: o coração da democracia
As reformas institucionais propostas, especialmente no que respeita ao Parlamento Europeu, também fazem soar o alarme. Limitar o número de deputados europeus, mesmo quando a UE se está a expandir, pode resultar num desequilíbrio democrático. Um número fixo de representantes, apesar do aumento da população total da UE devido ao alargamento, pode fazer com que os Estados mais recentes ou mais pequenos se sintam marginalizados.
Para além disso, as reformas institucionais sugeridas para a Comissão Europeia, designadamente a proposta de terminar com a regra “um Estado-Membro/um comissário” corre o risco de diluir a identidade nacional. Isto pode levar a uma situação em que certos Estados-Membros sintam que os seus interesses não estão adequadamente representados, enfraquecendo a legitimidade da Comissão aos olhos dos cidadãos dos Estados sub-representados.
Navegar para o futuro
O documento explora formas de fazer avançar a reforma sem ter de alterar totalmente o Tratado, introduzindo as noções de “tratado ou tratados suplementares” entre “Estados membros dispostos a isso”.
Com as alterações estruturais sugeridas, em especial as que podem potencialmente marginalizar os Estados-Membros mais pequenos ou mais recentes, ou os “que não se sentem dispostos a isso”, existe um risco genuíno de exacerbar os sentimentos populistas. Se os cidadãos sentirem que as reformas marginalizam os seus interesses nacionais ou se virem a UE como uma instituição dominada por alguns grandes Estados, isso poderá constituir um terreno fértil para os líderes populistas galvanizarem o apoio contra os objectivos da UE. Além disso, o sistema de integração a vários níveis que é sugerido pode ser utilizado como arma por narrativas populistas, argumentando que cria uma adesão de “primeira classe” e de “segunda classe” na UE. Por conseguinte, a condução destas reformas requer não só uma subtileza política e institucional: embora reformas sejam vitais para uma instituição em evolução, não devem ser efectuadas à custa dos seus princípios fundamentais ou dos interesses dos seus Estados-Membros. É uma linha ténue, mas com uma análise cuidadosa e um compromisso com os seus valores fundamentais, a UE pode garantir que navega mais forte e mais unida.