No seu novo livro, um dos maiores defensores do liberalismo internacionalista, G. John Ikenberry, faz um argumento diferente das suas obras anteriores. Explica que uma ordem internacional liberal, nesta altura do campeonato (leia-se, com a emergência da China, coadjuvada, pelo menos em parte, pela Rússia), deve ser essencialmente defensiva. Trocado por miúdos, a pressão do sistema internacional aconselha a que as democracias se juntem, partilhem interesses e valores, se defendam mutuamente e não sejam demasiado afoitas nas suas decisões internacionais.

Ikenberry tem razão. O liberalismo internacionalista, que cometeu excessos nos anos 1990, que os Estados Unidos ainda estão a pagar, é uma ideologia suficientemente flexível para se adaptar às mudanças sistémicas. Fê-lo em vários momentos da história e este não deverá ser exceção. Perante desafios tão difíceis como os que se avizinham o mais importante, nesta altura, é conservar a democracia.

Isto a propósito da saída do Fidesz do grupo parlamentar do Partido Popular Europeu. Foi uma saída de “livre vontade”, mas que veio depois de uma pressão continuada de uma parte dos seus pares, que deixaram de aceitar ter na sua família política um partido cada vez mais iliberal.

Ao contrário do que se possa pensar, sair do grupo parlamentar não implica sair da família política a que o Fidesz pertence. O que acaba por deixar o ónus do destino do partido húngaro nas mãos do PPE. Há três cenários possíveis (no momento em que este artigo está a ser escrito): ou as coisas ficam como estão indefinidamente; ou o Fidesz se junta a outro grupo parlamentar, não deixando ao PPE outra hipótese senão expulsá-lo; ou o PPE terá de chegar a uma posição conjunta (ou pelo menos relativamente) e abrir um processo de expulsão ao partido que abandonou o grupo parlamentar a que pertencia. Assim, Viktor Orbán, mais uma vez, coloca um dilema aos seus pares, que muito provavelmente terá que esperar por uma decisão da CDU, o partido que domina a família política democrata cristã. E ao mesmo tempo, cria a oportunidade de mais um momento de vitimização legitimadora do líder húngaro.

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Orbán tem sido o enfant terrible da União. Primeiro, porque na última década começou a suprimir as liberdades e garantias da sua população. Foi um caminho paulatino mas seguro, que passou pela mudança da constituição, em que a liberdade de imprensa é severamente reduzida e o poder dos tribunais encolhido pela centralização dos poderes na sua figura e partido, pela transformação da narrativa húngara numa mais nacionalista e saudosista das glórias passadas do império, em nome da recuperação das quais os direitos cívicos da população estão subordinados. O mais recente episódio foi fazer passar no parlamento que Orbán governará por decreto e por tempo indeterminado para combater a pandemia.

A Comissão Europeia moveu-lhe processos – ainda por terminar – mas isso é tudo o que o líder húngaro quer. Para afirmar a sua agenda, Orbán constituiu a União Europeia como “o Outro” que impede a Hungria de ser como quer, o que legitima o seu partido a nível interno. Daí que esteja sempre em conflito com as instituições europeias e que os seus deputados europeus tenham criado mais esta forma de desestabilização, que deixa o PPE com uma decisão difícil nas mãos.

Não será fácil para a família democrata cristã. Aliás, é essa a razão pela qual ainda não houve declarações das figuras mais destacadas (e do próprio PPE) acerca deste processo. Mas perder votos e lugares no Parlamento por razões de valores é uma decisão importante. As organizações internacionais construídas a partir de uma normatividade comum para terem credibilidade precisam de preservar aquilo que as torna o que são.

Este também pode vir a ser um grande exemplo de como preservar a democracia sem cometer excessos liberais. A democracia não se conserva com discursos grandiloquentes sobre a salvação da humanidade – que depois não significam nada ou não têm materialização possível – nem com pequenas (e grandes) guerras da paz. Conserva-se com posições firmes perante os que a querem corromper. Até porque a União Europeia, se quiser ter influência internacional, precisa de credibilidade. E esta não se ganha dizendo uma coisa e fazendo outra. E Orbán precisa mais da Europa do que a Europa precisa de Orbán.

O PPE é só uma família do Parlamento Europeu, uma pequena parte da estrutura institucional europeia. Mas a posição em que se encontra e as decisões que pode tomar fazem acalentar a esperança de que as organizações internacionais com base em valores percebam que a sua importância e credibilidade dependem do mínimo de coerência. E dá um exemplo inequívoco, como explicou Ikenberry, de como se preserva a democracia. É disso que precisamos.