Esta semana Hollywood entrou-nos pelas casas adentro de uma forma singular. Por um lado, ficámos a saber que a nova versão de “Mulan”, da Disney foi, em parte, filmada em Xinjiang, a província onde estão instalados os chamados “campos de reeducação” para minorias religiosas. Nos créditos há agradecimentos à agência governamental que tutela estes campos, de onde chegam notícias de violações graves da dignidade das pessoas detidas, aparentemente apenas por não pertencerem à maioria religiosa do país. Tanto quando se sabe, a companhia cinematográfica não prestou declarações sobre o assunto. Reclamações parece que só mesmo nas redes sociais. O que se passa na China, fica na China.

Logo a seguir fomos informados que, quase sem vozes críticas, os nomeados para o prémio de melhor filme da Academia terão de passar pelo critério da “diversidade”. Isto significa que, para ser admitido na corrida, 30% dos atores têm de ser provenientes de “grupos sub-representados”. E um dos protagonistas terá também de preencher esse requisito. Diz a academia que quer estimular a diversidade de atores e público e por isso – agora digo eu – resolveu impor regras estritas à criatividade. Quem quiser o prémio, a partir de 2024, só com caderno de encargos.

Podem dizer-me que uma história não tem nada a ver com a outra. Mas tem. Por três motivos. Em primeiro lugar porque a sociedade civil tem um papel na normalização do que achamos aceitável, dos valores com que vamos construindo e modelando as sociedades ocidentais. Estamos perante um exemplo de duas entidades respeitadas internacionalmente, que intervêm nas nossas vidas com bastante frequência. Em segundo lugar, porque os dois episódios mostram uma triste e dura realidade: a utopia do universalismo morreu (o que não é mau por si só, porque as utopias, mais tarde ou mais cedo, geram excessos, muitas vezes armados e com instintos assassinos) e foi substituída por uma espécie de utopia da igualdade. O que nos leva ao terceiro ponto: aparentemente, agora, para um conjunto considerável de pessoas neste mundo, os direitos das minorias sobrepõem-se aos direitos universais. É uma mudança radical, utópica, e indesejável (e já agora, num pequeno parênteses, foi o princípio fundamental que levou Donald Trump a ganhar as eleições em 2016 e que o pode, entre outros motivos, levar a ganhar agora).

Passo a explicar: observar os direitos das minorias é fundamental numa sociedade saudável. Sobrepor os direitos das minorias aos de todos os outros e tentar normalizar esse estado de coisas não é. Não é o mérito inegável da causa. É a imposição da forma como a causa deve ser vista no contexto social. Condenar e sancionar socialmente – das mais diversas maneiras – quem não quer excluir o todo, não me parece aceitável. Exemplos? Como escrevi noutro artigo, ser antirracista não significa ser politicamente correto ou um adepto desta counterculture. Significa repudiar o racismo. Como escrevi mais acima, ser a favor dos direitos das minorias étnicas não pode significar a destruição da liberdade criativa. Não pertencer ao grupo de pessoas que se autointitulam “progressistas” e defensoras destes direitos não pode significar que todas as outras pessoas, que até subscrevem os mesmos princípios (ou não), mas que procuram outras soluções que integrem todos, possam perder oportunidades, empregos, liberdade e amigos por isso.

Fundamentalmente, as utopias, que normalmente têm boas intenções, pelo menos no início, dão cabo das sociedades. Dividem-nas. Ou se pertence ou não se pertence. Reduzem drasticamente o debate tão necessário em tempos como os que vivemos. Ferem a moderação e o diálogo. Criam autocensura. Ah, e já agora, geram contrautopias. Donald Trump e os demais populistas à direita são isso mesmo. Têm a certeza que é neste mundo que queremos viver?

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