1 Confesso-vos que estou cansado. Não dos confinamentos e muito menos de seguir as indicações das autoridades sanitárias — a crise pandémica existe e só com o respeito pelas regras é que poderá ser combatida de frente e ultrapassada. Estou cansado, sim, de conversas da treta, de estratégias assentes em spin doctors, de decisões simpáticas por puro receio da reação da comunidade, de otimismos infundados (e irritantes por serem verdadeiros atentados à inteligência humana) e, acima de tudo, da incompetência.

Uma vez mais, vimos um pouco de tudo isto quando um António Costa efusivo apresentou uma estratégia parcial de vacinação feita a martelo e um primeiro-ministro bonzinho aligeirou as regras para a época do natal, passando a batata quente para as mãos dos portugueses.

Foquemo-nos na vacinação e com um ponto prévio claro para evitar equívocos: sempre fui, sou e serei a favor das vacinas como método eficaz de impedir a propagação de doenças. Tal como confio na indústria farmacêutica ocidental e nas entidades reguladoras nacionais e europeias. Mas não abdico de ser exigente enquanto cidadão com o plano de vacinação contra a covid-19 que o Governo quer, e bem, implementar. Precisamente porque quero ser vacinado.

2 Ora, essa confiança não sai reforçada quando tenho consciência (e qualquer pessoa com olhos de ver também terá) que o pequeno espetáculo que vimos na apresentação da última 5.ª feira foi uma manobra de marketing para sossegar a opinião pública. Tal estratégia só estava prevista para a segunda quinzena de dezembro, como já tinha sido noticiado por vários órgãos de comunicação social, mas teve de ser antecipada porque Costa, o mago dos focus group, arriscava um dano de imagem se não apresentasse qualquer coisa antes de o Reino Unido iniciar a vacinação já amanhã, dia 8 de dezembro, como expliquei aqui.

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Está claro que plano apresentado foi apenas foi um meio-plano em que, genericamente, foram apresentadas medidas que se limitam a seguir regras aconselhadas pela União Europeia, nomeadamente sobre grupos prioritários. Nada foi dito sobre os complexos aspetos logísticos — sendo, aliás, sintomático que o vice-almirante Gouveia e Melo, o principal responsável por essa matéria, tenha dito apenas palavras de circunstância.

Mas o que foi dito levanta questões práticas que merecem ser escrutinadas nos próximos tempos, como se pode ver neste trabalho do Observador. A saber:

  • Centros de Saúde. Se se compreende o argumento da escolha dos centros de saúde, pela experiência dos seus profissionais de saúde em termos de vacinação, o facto de estarmos perante um plano de vacinação único e com uma dimensão verdadeiramente colossal já torna essa opção em algo difícil de compreender. Pensando nos diversos centros de saúde que conheço em todo o país, de sul a norte, pergunto: como será possível vacinar 950 mil pessoas — pensando só na primeira fase — em três meses nas instalações decrépitas e atarracadas que caracterizam os nossos centros de saúde? Quais as razões lógicas que impedem Portugal de utilizar os inúmeros pavilhões ou arenas que existem em todo o país para garantir melhores condições sanitárias e de eficácia para vacinação dos portugueses? Por exemplo, Reino Unido, Alemanha e Espanha vão recorrer a estádios de futebol, pavilhão multi-usos e outras infra-estruturas de grande envergadura.
  • A velocidade da vacinação. Portugal só vai ter 1.200 pontos de vacinação. Só Espanha vai ter 13.000 postos. Ou seja, um país com uma população quatro vezes superior à nossa vai ter onze vezes mais pontos de vacinação do que os nossos. Como a Vera Novais já escreveu no Observador, o Governo quer vacinar cerca de 15 mil pessoas por dia do primeiro grupo prioritário entre janeiro e março. Mas quer atingir este objetivo mantendo o serviço habitual, sem trabalhar ao fim-de-semana e sem alargamento de horário. No Reino Unido, por exemplo, os centros de saúde selecionados vão funcionar sete dias por semana e com o habitual horário português entre as 8 as 20 horas. Tendo em conta a altíssima produtividade nacional, é caso para dizer que os bifes são tontos.
  • A exclusão das farmácias. Como já sabemos que a ministra Marta Temido não abdica do seu preconceito ideológico contra o setor privado da saúde — numa linha muito semelhante ao ódio visceral que o PCP e o Bloco de Esquerda têm à propriedade privada —, não surpreende que as farmácias tenham sido excluídas da primeira fase da vacinação. Porquê? Porque razão as farmácias, que têm técnicos igualmente qualificados, não poderão administrar a vacina contra a Covid-19 e assim aumentar a nossa rede de vacinação? No Reino Unido, por exemplo, as farmácias comunitárias farão obviamente parte do plano desde o primeiro momento.
  • Os riscos da segunda fase e das seguintes. Se todas as dúvidas acima expostas dizem respeito à primeira fase, imagine-se os 2,7 milhões que deverão fazer parte da segunda fase e dos restantes portugueses que farão parte das seguintes. Sendo certo que qualquer atraso na primeira fase terá sempre efeitos nos períodos seguintes. Alguém acredita que não haverá atrasos?

Como Francisco Ramos, o competente líder da task force, já avisou que o plano de vacinação “nunca estará fechado” e será sujeito a uma “revisão permanente”, a minha esperança é que tudo melhore até as vacinas chegarem a Portugal. Infelizmente, não sei se o bom senso que caracteriza Ramos prevalecerá.

3 Tive uma pequena sensação de deja vu quando ouvi o ministro João Leão a jurar que ainda acreditava num crescimento de cerca de 5,4% em 2021, tal como está inscrito no Orçamento de Estado. Quase que jurei que estava a ouvir Jorge Braga de Macedo a jurar em 1992 no Parlamento que Portugal era um oásis económico — quando os tambores da crise já ecoavam na Europa e um ano antes do país entrar em recessão.

É certo que Leão tem a Comissão Europeia do seu lado, que fez uma previsão idêntica no seu boletim de outono. Mas a tradicionalmente cautelosa OCDE apresentou na semana passada números bastante diferentes para os próximos dois anos. Segundo o estudo da OCDE, Portugal deverá ser o terceiro país da União Europeia que uma queda do produto mais acentuada em 2020. Pior do que nós só a Espanha (-11,6%) e a Grécia (-10,1%).

O pior, contudo, vem depois: a previsão média de crescimento nacional para 2021 e 2022 é de apenas 1,8%. Em 2021, só a Holanda, Luxemburgo, Irlanda, Grécia, Finlândia, República Checa e Áustria crescem menos do que nós. Sendo que no ano seguinte, a situação piora bastante: só Noruega e Finlândia têm um crescimento inferior ao nosso. Segundo a OCDE, os tempos do crescimento anémico está de regresso — e para ficar.

É certo que estamos no campo das previsões mas uma coisa é certa: para uma economia que baseou o seu crescimento num boom turístico sem paralelo e que pouco fez nos últimos cinco anos para melhorar a sua competitividade, as perspetivas não são positivas. Tudo porque o turismo deverá ser dos últimos setores a recuperar. Apesar da vacinação começar em força no início do ano, o medo de viajar ainda perdurará durante muito tempo.

Nem vale a pena falar da verdadeira bomba atómica que as moratórias representam para o setor financeiro.

Só um crescimento económico robusto da Zona Euro, em particular dos mercados que mais compram produtos portugueses (Espanha, França e Alemanha) poderá ajudar a atenuar a dependência que Portugal tem do turismo. E do milagre da bazuca europeia previsto para o final do ano — isto se for ultrapassado o conflito com a Hungria e a Polónia.

Como diz Teodora Cardoso, o problema está num Executivo que tem caído na contradição permanente “entre o acentuar da dependência da governação relativamente a partidos declaradamente antieuropeístas [PCP e Bloco de Esquerda]” que impedem qualquer reforma digna desse nome “e a dramática dependência financeira relativamente à Europa.”

Esse é que é o diabo — aquele que António Costa diz que nunca existiu.