As próximas décadas reservam-nos grandes transformações e grandes incógnitas. A transição ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática, o Antropoceno). A transição digital e a incógnita da inteligência artificial (o advento do transumanismo). A transição produtiva e a incógnita das migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais, o advento de uma nova geopolítica). Só não sabemos se estas transformações serão convergentes ou divergentes.

Já aí está a polémica acerca de um novo regime climático, designado por Antropoceno. As ciências sociais e humanas colam-se mais às ciências naturais em busca de uma explicação, a variável climatérica deixa de ser uma variável exógena para se converter, cada vez mais, numa variável endógena. A severidade e a hostilidade do clima afetam a nossa vida quotidiana, avisando-nos de que a transição ecológica é um horizonte incontornável de sentido para a vida humana, um sentido de finitude, de limite e responsabilidade. Se não respeitarmos a natureza, não haverá coevolução benigna homem-natureza e o nosso quotidiano poderá transformar-se num verdadeiro inferno.

A segunda grande transição diz respeito à transformação digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade e transgressão, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade. A informação bruta produzida pelas tecnologias da informação e comunicação é a matéria-prima do século XXI e a economia crowd a nossa principal força propulsora.

A terceira grande transição diz respeito às grandes migrações, de pessoas que buscam trabalho e refúgio, de mercados de bens e serviços que buscam a melhor deslocalização para serem produzidos, de capitais que enlouquecem em busca da melhor rentabilidade, de plantas e animais que buscam novos habitats para poderem sobreviver. É verdadeiramente a luta pela vida.

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E perante esta tripla transição, será que os seus principais protagonistas têm consciência, em toda a sua plenitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência. É certo, há muitos sinais contraditórios e suspeições recíprocas. A comunidade ecológica suspeita da arrogância tecnológica e digital, enquanto os atores do digital, marcados pela desmaterialização e a eficiência, se consideram ecológicos por natureza. As duas transições desencadeiam círculos virtuosos e círculos viciosos e pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas. Por outro lado, e face a estas duas transições, a perceção do risco fica de tal modo vulnerável e instável que as migrações acabam por acelerar o metabolismo global e sistémico das três transições ao mesmo tempo que provocam ondas de choque em todas as direções.

É aqui, neste metabolismo sistémico emergente e vertiginoso, que a contribuição do filósofo Paul Virilio, sobre as relações entre velocidade, tecnologia e política, faz todo o sentido, uma vez que, no atual contexto, a velocidade das transições excede o tempo da política e muda a nossa perceção do tempo e do espaço, agora que estamos a migrar para o universo do ciberespaço onde a velocidade é uma vertigem e o risco de colisão é cada vez maior. Estamos, por isso, mergulhados numa cronopolítica, uma espécie de corrida contra o tempo, subestimando o mundo sensível e a sensibilidade e especulando sobre as reais necessidades da economia, sempre em busca do buraco negro da extraterritorialidade para escapar às nossas responsabilidades coletivas. Imagine-se, por exemplo, a velocidade de uma tecnologia como a inteligência artificial e a automação das máquinas inteligentes e estaremos cada vez mais próximos de muitos incidentes e acidentes de percurso.

Acresce que, o tempo lento da política, que é o tempo do compromisso de sociedade, não se compadece com o infinitamente pequeno do tempo instantâneo, o tempo infra, o tempo do reflexo e não da reflexão, tudo isto por que o tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina e o poder foi delegado nas máquinas do tempo. De certo modo, a História transferiu-se da Terra para o Céu (a computação em nuvem), a aceleração do tempo tornou o mundo plano e emergiram os não-lugares onde a identidade dá lugar à rastreabilidade e à vigilância. Acresce, ainda, para mal da política do compromisso, a desconstrução da cultura geral devido à alucinação e à loucura de informação, em que a aceleração do tempo nos impede de ver a diferença entre verdadeiro e falso, já para não falar do défice de empatia entre os seres humanos, agora substituído pela sincronização das emoções na colónia virtual ou pelo comunismo dos afetos, uma espécie de nova tirania dos sentimentos.

A velocidade das transições excede, ainda, o tempo da política por uma razão adicional, ela transforma o estado-nação numa variável endógena da globalização, não apenas por que os mini-crashes serão cada mais frequentes devido aos automatismos das máquinas, mas, também, por que a soberania nacional fica posta em causa como é claramente visível na guerra informática e cibernética.

Finalmente, a velocidade das transições excede o tempo da política por que transforma a arte e a cultura numa vítima colateral, apesar da sua forte reação e poder de combate. Dito de outro modo, a política pode ter na arte e cultura um excelente aliado contra o imediatismo e o mediatismo, mas ainda não foi capaz de sugerir ou propor essa aliança. Este tópico é muito importante uma vez que a arte e a cultura introduzem distância, duração e imaginação que são necessárias ao compromisso político.

Nota Finais

A alta velocidade das três grandes transições referidas e as suas propriedades sistémicas emergentes tiram-nos o discernimento para o combate político, mas, não obstante, estamos totalmente dependentes de uma tripla aliança entre a política, a ciência e a tecnologia, a arte e a cultura. Qual é o estado da arte nesta matéria?

  • No plano político, perante o drama dos limites e a tragédia dos comuns, a dúvida que permanece é a de saber se a transição climática e ecológica contribuirá para repolitizar o nosso tempo, recolocando a equação do tempo no registo certo e chamando a atenção dos principais protagonistas da política contemporânea para a força transformadora da sua convergência e do seu compromisso.
  • No plano da ciência e tecnologia, se olharmos para as várias bombas da ciência – atómica, informática, genética, climática – há um momento em que a arrogância da ciência se torna insuportável, pois não tem em devida conta os seus efeitos negativos e as pegadas que acumula; um dia a ciência ainda vai ser obrigada a engolir a sua arrogância tecnocientífica e a viver de acordo com as necessidades e a nobreza da pobreza.
  • No plano da arte e cultura, se ficarmos prisioneiros do instantâneo e do imediato, de tudo num instante, onde o écran entra em concorrência com a escrita e a imagem com a linguagem, a aceleração da velocidade vai impedir-nos de ver a realidade e o tempo humano será esmagado, não teremos tempo para nada.

Como se constata, fomos capturados pela cronopolítica, por isso, precisamos de protagonistas que saibam interpretar as propriedades emergentes do novo paradigma e levar a bom porto a grande aliança entre a arte da política, da ciência e da cultura. Um desafio maravilhoso e surpreendente para esta década. Afinal, a arte existe para que a realidade não nos destrua.