Todos sabemos que dentro de duas semanas ninguém se lembrará disto, como ninguém se lembra já de outras histórias iguais. Todos sabemos que não terá influência nas eleições, como outros casos não tiveram no passado. No entanto, neste momento, há que falar de Passos Coelho e dos seus processos fiscais e pagamentos atrasados à Segurança Social, que ele entretanto regularizou, mas não a tempo de evitar mais uma redacção de José Sócrates, desta vez sobre “miséria moral”. Examinemos então a miséria e a moral desta história.

A primeira nota significativa é que se trata de uma história muito velha. Desde 2011, quando Passos Coelho disputou o poder a Sócrates, que rumores sobre os seus processos fiscais serpenteiam pela internet. Em 2012, o primeiro-ministro já teria sido questionado por um jornalista sobre eventuais dívidas à Segurança Social. Em qualquer dos casos, trata-se de pequenas quantias, entre 100 e 2500 euros. Por qualquer razão, foi agora que finalmente tudo transbordou da internet para os jornais e as televisões.

Temos aqui uma das mais curiosas dimensões da vida pública portuguesa: aparentemente, a primeira coisa que a eleição de um político provoca em Portugal é uma corrida às fontes contributivas e fiscais, à procura de lapsos e deslizes que o possam embaraçar. O objectivo, numa era em que o que conta é a “imagem”, não é fazer justiça, mas “mossa”. O ritual está fixado há muito tempo: enquanto o visado não diz nada, exige-se que “explique”; quando se explica, notam-se as “contradicções”; logo que se defende, aqui d´el-rei que está a “vitimizar-se”. Não pode ganhar, valendo-lhe apenas a indiferença pública que rapidamente absorve incidentes deste género mal saem das primeiras páginas e da abertura dos noticiários.

A propósito do caso do primeiro-ministro, logo alguém lembrou que também António Costa foi há anos acusado de vários lapsos fiscais (que negou). De facto, só se Passos e Costa não tivessem vivido e trabalhado em Portugal é que nada poderia ser levantado contra eles. Haverá em Portugal algum cidadão que nunca teve dúvidas genuínas acerca do que devia ou não pagar? O nosso regime fiscal e contributivo é tudo menos simples e transparente. Todos temos, a esse respeito, histórias para contar. Em Portugal, o fisco e a segurança social não servem apenas para subtrair uma grande parte dos rendimentos aos cidadãos, mas também para os empurrar para toda a espécie de irregularidades e infracções involuntárias. O fisco e os demais regimes contributivos, pela sua insondável instabilidade e complicação, são uma imensa armadilha. Neste sistema, não é necessário haver evasão fiscal para haver delitos. Aos cidadãos comuns, a máquina causa toda a espécie de incómodos; quando se trata de políticos e figuras públicas, colabora, violando o sigilo, na fabricação de todos os escândalos. Ninguém é perfeito, como disse o primeiro-ministro, mas em Portugal mesmo a perfeição seria apanhada em falta. Talvez por isso, ninguém verdadeiramente espera demissões nestes casos, ao contrário do que acontece em países onde os serviços funcionam regularmente. Acerca da regularidade dos nossos, basta dizer isto: não foi a Segurança Social, que nunca o notificou, mas um jornalista – repito, um jornalista — , quem alertou o primeiro-ministro para a dívida.

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Depois de abordado pelo jornalista em 2012, Passos Coelho contactou o Centro Distrital da Segurança Social de Lisboa. Ter-lhe-á sido dito que a sua situação era “regular”, embora pudesse pagar uma quantia de 2880 euros “voluntariamente” e para “constituir direitos futuros”. Não o fez, o que, perante a informação que lhe terá sido dada, era uma opção legítima. Segundo o ministro da Segurança Social, mais de 100 000 outros contribuintes estão na mesma situação.

Mas apesar de a sua situação contributiva ser regular e a dívida estar prescrita, não devia Passos Coelho ter previsto que o pagamento em falta acabaria um dia por ser utilizado contra si? Sim, devia. E essa é, no fundo, a questão: porque é que, até pela dívida ser relativamente pequena, não a liquidou logo em 2012, quando dela tomou conhecimento, de modo a poupar-se às inevitáveis especulações jornalístico-partidárias? Segundo explicou, não quis que, como primeiro-ministro, parecesse estar a “usufruir de algum benefício particular”. Não lhe ocorreram outros riscos?

Ao raciocinar desta maneira estamos, porém, a admitir que a política, afinal, depende apenas da “gestão” da “agenda mediática”, isto é, da habilidade de criar ou de matar “histórias”, independentemente dos factos. E é aqui que está a verdadeira “miséria moral”. Porque o som e a fúria que têm sido gastos neste caso não decorrem de um real interesse pela verdade ou de um genuíno cuidado pelo bem público, mas de um desporto político-mediático ao nível da coscuvilhice e voyeurismo das revistas cor-de-rosa. É um jogo sem consequências jurídicas nem outros efeitos que não um reforço do cinismo e da hipocrisia com que toda a gente se permite encarar a política. Ao contrário do que possa parecer, a oligarquia do regime é a primeira interessada nesta espécie de praxe académica. Nada melhor para rebaixar toda a gente e garantir que nunca haverá ninguém, na vida pública, com “autoridade moral” para agitar o sistema. E nada melhor, também, para diluir os autênticos surtos de corrupção e abuso do poder.

Entretanto, todos os partidos da Assembleia da República – repito: todos os partidos, da direita à extrema-esquerda — apresentam propostas para alterar as sanções ou amnistiar as dívidas por não pagamento nas antigas SCUTs. Imagino, perante um zelo tão universal, que o arquivo das dívidas das auto-estradas contenha elementos suficientes para animar a vida política durante vários anos.