Eu poderia, como muita gente, perguntar-me se a esquerda não está a magnificar propositadamente o Chega para satisfazer o seu velho fantasma de que a direita no seu todo não é mais do que o prolongamento natural do Estado Novo. Porque, não tenhamos dúvidas, toda esta conversa sobre o prometido chumbo de Pacheco de Amorim (ou de qualquer outro deputado do Chega) ao cargo de vice-presidente da Assembleia da República tem a consequência de instalar o Chega no seu lugar ideal, o da vitimização dos excluídos do sistema. E, como é óbvio, de aumentar, logo a curto prazo, a sua base eleitoral.

Porque o eleitorado do Chega está longe de se restringir a um núcleo maciço sem capacidade de se expandir para lá de limites restritos. Pelo contrário. Como os seus actuais doze deputados mostram – mais, convém lembrar, do que os do Bloco e do PC juntos (o muro derrubado por Costa acabou por lhes cair em cima) –, o seu voto extravasa largamente o daqueles que vêem em Ventura o paladino das causas dos “deploráveis” cá de casa. Congrega também muita gente que, de diversa e mais pacata maneira, reage contra a ideologia difusa que tende a permear a sociedade. E esse tipo de voto tem todas as condições para progredir. Sobretudo se o “cordão sanitário” em torno do Chega se apertar.

Mas este raciocínio, por correcto que me pareça, não toca no problema que, apesar de tudo, é o mais grave. O problema mais grave é o do desrespeito pela democracia que o chumbo anunciado a uma vice-presidência do Chega, a que ele constitucionalmente tem direito, representa. Dêem-se as voltinhas que se derem, estamos aqui em presença de um ataque às regras da democracia. Não um ataque indirecto e feito de obscuras subtilezas, mas directo e às claras, à plena luz do dia. A legitimidade da representação é declaradamente mandada às urtigas. Se isto não é óbvio, nada é óbvio. E a frase de Voltaire que toda a gente gosta de citar sobre a defesa do direito da expressão das ideias às quais nos opomos deveria doravante queimar os lábios de quem, votando contra a vice-presidência do Chega, a pronunciasse.

Ignoro como se portará, nesta matéria, o PSD. É difícil, de resto, desde a deriva teológica de Rui Rio sobre a natureza de “centro-esquerda” do PSD, que a tão lindos resultados conduziu, mergulhando-o na insubstancialidade, saber o que pensa o PSD, se alguma coisa pensa, sobre o que quer que seja. Mas, se também ele votar contra a vice-presidência do Chega, conseguirá descer ainda um degrau abaixo. Se não o fizer, merece os parabéns possíveis.

No fundo, é o espírito prévio ao 25 de Novembro – que é também, num certo sentido, o espírito prévio ao 25 de Abril, apenas que de sinal contrário – que assim se manifesta. É o desprezo pela “democracia formal” em benefício de uma suposta “democracia” que se define, ao arrepio de qualquer “formalidade”, pela exigência de uma comunidade unânime de valores. Ora, se é verdade que qualquer sociedade, para subsistir, precisa de partilhar um certo número de valores, quanto mais não seja para atenuar os conflitos intestinos que a atravessam, também o é que a democracia formal fornece o quadro para o conflito entre valores diversos e, muitas vezes, opostos. Querer que assim não seja é contrariar o próprio projecto da democracia. Foi isso que fez o Estado Novo, foi a isso que ambicionaram os revolucionários até ao 25 de Novembro.

Pretender que aquilo que acabo de dizer corresponde a qualquer forma de simpatia por Ventura e pelo Chega, coisa que as máquinas de tradução ideológica não deixarão de fazer, é algo que não merece sequer uma resposta. De facto, até mencionar tal possibilidade é já uma cedência que nada nos obriga a contemplar. Há limites para a explicitação do óbvio. Em nenhuma conversa convém ultrapassá-los. Seria dar a mão ao delírio.

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