Caro leitor, abra o Google e escreva “mulheres afegãs”. Não, não é esse tipo de procura no Google que depois o obriga a apagar o histórico de pesquisa. Mas, pelo sim, pelo não, ignore as sugestões marotas do preenchimento automático do motor de busca. Já está? Aposto que, entre notícias e colunas de opinião, aparecem dúzias de artigos muito preocupados com a situação das mulheres afegãs. Se repetir o mesmo com “afghan women”, verá que são centenas. E bem, pois as mulheres afegãs estão, de facto, lixadas. Como está todo o povo afegão, aliás. E é aqui que queria chegar: se fizer a mesma busca com “homens afegãos” já não vai aparecer nada digno de registo.

A impressão que dá é que os talibãs são apenas uns hippies inofensivos, que gostam de eyeliner e de passeios em carrinhas de caixa aberta, cujo único defeito é tratarem mal as mulheres. Por exemplo, ao ler este título Sinal terrível para as mulheres”: rede Haqqani, ligada à Al-Qaeda, encarregada da segurança em Cabul”, somos levados a pensar que esta tal rede Haqqani é só uma Prosegur muito machista. Na realidade, são assassinos sanguinários. Sim, também impedem as mulheres de andarem na rua sem burca, mas – e se calhar falo só por mim – ao nível da imposição de vestuário, continuo a preferir que me forcem a usar um pano na cabeça do que me calcem uns sapatos de cimento.

Esta notícia também é paradigmática: “Taliban começam a tomar primeiras decisões contra as mulheres”. Então não é que estes malandros não só praticam a chacina sistemática, como ainda se atrevem a impedir as mulheres de falarem na rádio? Ah, malditos! Felizmente, a União Europeia está atenta e não vai permitir que arruínem os programas da manhã predilectos dos afegãos. Quando há um atentado em Cabul, as pessoas sentem-se reconfortadas ao ouvir a sua locutora favorita informar que ruas estão fechadas ao trânsito por causa das pilhas de cadáveres. A UE vai-se empenhar para que isso continue a acontecer.

(Nota: à hora a que escrevo, estes dois artigos ainda se encontram no site do Público. Não garanto que, entretanto, não tenham sido despublicados por razões éticas)

Quem lê algumas destas lamúrias sobre o facto de as mulheres perderem direitos, não poderem estudar, não poderem mostrar a cara na rua e outras sevícias do género, fica convencido que este é um diálogo típico em Jalalabad:

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– Já sabes dos Musharraf?

– Que sucedeu?

– Os talibãs castraram o Abdulah, enfiaram-lhe o pénis e os testículos na boca e depois cortaram-no às postas. Entretanto, a Fatma foi obrigada a usar burca.

– Coitada! Com este calor? Ela odeia andar abafada. Nem imagino o cheiro a naftalina da burca. E as crianças?

– Então, o pequeno Mohamed foi incorporado à força num esquadrão suicida. A esta hora já se deve ter rebentado num mercado em Candaar. A Zahra, pobrezinha, foi impedida de ir à universidade concluir a pós-graduação em Estudos de Género.

– Que injustiça! Logo agora que estava tão entusiasmada com a cadeira de Igualdade de Género Através de Design Interseccional e Arquitectura Anti-Racista. Estes talibãs são mesmo umas bestas.

Na realidade, os talibãs não são meros malandros marialvas. São – e isto é capaz de chocar – homicidas. Homicidas sexistas, é verdade. Mas a segregação que praticam na carnificina é, curiosamente, discriminatória para os homens. Vejamos: segundo um relatório da ONU, nos primeiros seis meses de 2021, dos 1659 civis afegãos mortos no conflito com os talibãs, só 14% são mulheres. 54% são homens, quase quatro vezes mais. Os restantes 32% são crianças. Partindo do princípio que metade são raparigas e metade são rapazes, quer dizer que há mais meninos a morrer do que mulheres adultas.

(Em 2020, a distribuição das baixas civis foi de: 57% homens, 13% mulheres, 30% crianças. Em 2019, foi de 58%, 12%, 30%. Em 2018, foi de 62%, 10%, 28%. Morrem sempre menos mulheres do que rapazes. Os relatórios destes e dos anos anteriores estão aqui)

De facto, é uma infelicidade que as afegãs não possam ir à escola. Por outro lado, no Ocidente as mulheres podem e, apesar disso, às vezes esquecem conceitos básicos de Matemática. Se os aplicassem, percebiam que a vida dos homens afegãos também não é fácil. Sim, podem ir às aulas, mas para isso é preciso estar vivo. (Aqui na Europa, esta aprende-se logo na primeira lição de Ciências da Natureza).

De qualquer modo, espero que os talibãs arrepiem caminho e percebam que estão mesmo, mesmo a começar a irritar. Como este vigoroso aviso do Conselho de Segurança da ONU tão bem demonstra. Cautela com as quotas, seus patifes! Levamos a inclusão muito a sério. Quando divulgarem um decreto a condenar alguém à morte, é bom que venha assinado por pelo menos 33,3% de talibonas. A intolerância tem de acabar.

É fundamental que, a partir de agora, os talibãs revejam os procedimentos de chacina, deixem de ser preconceituosos e passem a respeitar os direitos das mulheres. Para já, diminuir o gender slay gap. Mas isso não chega. O grau de exigência tem de ser maior. É obrigatório que, antes de execuções sumárias, o carrasco pergunte à vítima quais os seus pronomes. Para não se enganar e dizer “que Alá tenha piedade deste blasfemo!”, quando devia dizer “que Alá tenha piedade destas blasfeme!” Há que fazer um esforço para não ofender. Além disso, obviamente, é indispensável que separem o lixo (cabeças num caixote, turbantes noutro, vísceras para reciclagem), consumam localmente e construam ciclovias. E não custava nada pôr a bandeirinha do arco-íris no Twitter do líder supremo Hibatullah Akhundzada. Mostrem que podem ser torcionários civilizados. Estaremos vigilantes. E vigilantas.