Deixei as estrelas e o silêncio no campo e mudei-me para a cidade. Troquei tudo por um horário das 9h às 18h, sem hesitar.  O chilrear das cotovias deu lugar às buzinas, são pessoas apressadas pelo ritmo que não conhece a melodia do silêncio. A buzina matinal que chegava com o padeiro são agora senhas nos balcões que rodam como as pessoas nas próprias vidas.

O tempo agora é tão alucinante que não me apercebo que as horas são minutos e os minutos não são horas. Mudei a rotina para um dia que começa a mil e termina em rotações desmedidas.

O despertador toca às 5 porque quero usufruir da sensação de o adiar por mais 10 minutos, volta a tocar mais 6 vezes programadas até sair da cama, 30 minutos depois. Dormi melhor porque os homens do lixo estão de greve e esta noite não passaram.

Olho sempre por uma fresta da janela, no horizonte são prédios e aglomerados de famílias, não são aquelas montanhas que nos deixam o infinito impercetível;  já vejo mais gente àquela hora que as pessoas da minha aldeia nos últimos sete anos a multiplicar por quatro. São vidas que se cruzam num dos períodos mais íntimos do dia sem que se dê conta. Uma chávena de café, a respiração sôfrega ou o “bom dia alegria”, olhos que se esfregam e mãos que se ajeitam, carregados pela expressão que se abre para o dia é das coisas mais generosas que podemos partilhar com alguém, mas ninguém se atravessa no olhar do outro. Primeiro estamos para o telemóvel, depois para nós e só por último para os outros.

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Saio de casa 40 minutos depois mas não posso deixar os fones para trás, é condição à própria vida e descobri isso nestas semanas. Ninguém se cumprimenta e ainda é das coisas que mais me faz impressão. Como é que se vive alheado de alguém que partilha o mesmo metro quadrado que nós?

Primeiro o comboio e é logo ali que começo a minha odisseia de somar vidas à minha imaginação. Estamos todos de fones no maior pendant que alguma vez conhecera. Eu finjo ouvir música.

Vão todos agarrados aos telefones, uns sorriem, outros exclamam, alguns tropeçam com os solavancos do comboio  sem que tirem os olhos do ecrã, a maior parte deles leva uma expressão tão fechada que parece zangada com o único contacto do dia: aquele ecrã de 12 por 8 que se tornou a nossa maior companhia. Ignoramos as pessoas que nos rodeiam, não sorrimos para elas e nem as vemos sequer. São pixels carregados por dados  que são móveis à maior ausência humana de sempre. Não há maior solidão que esta.

Hoje não encontro a senhora que vem no último capitulo de “As flores de Lótus”, mas vem no mesmo banco um rapaz na casa dos 30 que abana a cabeça ao ritmo daquilo que ouve.

Vejo ao fundo um casal de Chineses com os filhos, esqueceram-se dos fones em casa e vêm a brincar entre eles, o riso e a boa disposição é tão estridente que parece incomodar os demais. Mas eles continuam. Imagino-lhes a vida e retenho-lhes felicidade, absorvo aquela energia tocada a Mandarim e rejubilo para a manhã. Não é mito, a alegria dos outros contagia-nos mesmo.

Mudo para o metro e sigo ao ritmo apressado de quem caminha comigo. Sou empurrado para dentro da carruagem, não é exagero e é assim em todas as horas de ponta. Vivo inerte num espaço reduzido a mim e a outros 50, mas suspenso no ar. Ainda venho contagiado pelos chineses e encaro aquilo como uma coisa boa: vou à lua sem sair do metro(rio-me)? Começo o dia a levitar, quantos se podem gabar disso?

Vou então trabalhar, porque somos códigos e números que precisam de dar um rumo ao lado mais sério da vida. As contas têm que se pagar e cometemos sacrifícios de 40 horas semanais, engolimos sapos e fingimos sentimentos nas horas de sermos números sem causas porque o dinheiro nunca será uma causa. São tratados de responsabilidade com a incompetência de se colocar o lado humano de fora. O lucro nunca se faz sem as pessoas e o futuro também não. Mas voltamos a ter contas para pagar até nos cruzarmos com as oportunidades certas. Porque o mundo na cidade está mesmo à mão.

Saímos sempre mais tarde, são os extras para outros que nos impedem de chegarmos a horas para jantar.

Entro no metro e levo o mesmo semblante que encontrara  no rosto de tantos pela manhã. Mas não posso deixar de ser quem sou, na hora de ser aquilo que tenho que fazer.

Olho para o lado e vejo duas mulheres, uma delas chora e outra abraça-a: “Tinha que te contar pessoalmente que estava grávida, não fazia sentido fazê-lo por telefone”. De repente elas devolveram-me um novo sentido à vida pregada de rotinas. Nunca interrompo abraços e foi depois deles que as abordei:

“Qual de vocês é a Rita?”– Tinha ouvido o nome. Olharam com estupefação, por saber o nome ou então porque ninguém repara no coração dos outros. Só na aparência. Mas os sentimentos nunca podem ficar para trás. Dei-lhe os parabéns pela gravidez e agradeci-lhes aquela partilha de amor tão próxima de mim. Demos um abraço a três e seguimos cada um para a suas vidas.

Foi tão pouco mas soube a tudo. Passámos de estranhos a íntimos num mundo agarrado às redes sociais da aparência.

Mudei de novo para o comboio e foi na mesma carruagem que voltei a encontrar a mesma mulher de todos os dias. Semblante forte, levanta a cabeça por várias vezes para suspirar de forma desesperante, olha para o relógio a cada pouco e ata sempre o cabelo a meio da viagem. Já antes tinha imaginado a vida dela: uma máquina de lavar para estender, jantar para terminar, almoço para o dia seguinte, dois filhos e um trabalho das 9h às 21h para poder ser o motor de todas aquelas vidas. Ainda imbuído do episódio anterior, decido abordá-la para confirmar que só me enganara nos filhos, eram 3. Creio que já ninguém lhe dava atenção ia para duas vidas e o resto da conversa trouxe-lhe uma balão que lhe diminuiu os passos à saída do comboio. Pude saber nos dias seguintes que abrandou a rotina por ter começado a reparar nela, no desgaste que lhe causava e depois nela própria.

Chego a casa cansado mas carregado de vidas que se confundem num quotidiano viciado nos telefones e perdido para as pessoas.

Sei que para ser bom as pessoas fazem ao contrário, trocam a cidade pelo campo; mas é o desafio das oportunidades que me tem agarrado a esta descoberta incessante que não pára e me mudou o tempo. Ainda me confundo com a rotina que nunca fora assim, mas é em cada pedaço de gente que trago as histórias que sempre contei.

A cidade leva-me o tempo que ocupava a contar histórias, mas dá-me vida e pessoas por todos os dias, de todos os lados e a qualquer hora.

Fiquei sem as estrelas mas ganhei a luz que esbatida no Tejo entra pelo coração de quem sente como deve ser. Perdi o sossego mas acredito na adaptação e por cada vez que me lembro dos horizontes infinitos subo a uma das 7 colinas que me devolve parte disso e me deixa ver os últimos raios de sol ao som de um idioma que vem do outro lado do mundo.

Não sei se perdi mais do que ganhei mas continuo a sonhar todos os dias e desta vez faço-o acompanhado pelos desafios, porque é isso que a mudança nos tráz.

Porque são elas que nos fazem sentir vivos e nos renovam as páginas da vida; às vezes basta-nos mudar de roupa, de perfume, de carro, de amigos, da cor do cabelo, de casa ou até de canal. Mas é desta forma que contamos histórias à própria história.

Um dia conto-vos o final de tudo isto porque há sempre um “Era uma vez…” para tudo.