São muitas as razões para que escreva esta crónica sobre a Rainha Isabel II. Podia fazer referência aos 70 anos de reinado que consistiu numa vida inteira para tantos, mas esse aspecto diz respeito essencialmente aos britânicos. Isabel II marcou uma presença constante nas nossas vidas, mas nada equivale à relevância e importância que teve nos britânicos a representação que deles fez.

Também podia realçar o papel histórico de Isabel II, os desafios que enfrentou, que chegou a conduzir ambulâncias na Segunda Guerra Mundial, que se misturou incógnita entre as ruas de Londres para festejar o fim da guerra; que conheceu Churchill, lidou com ele, trabalhou com esse colosso nascido em 1874; que deu posse a 15 primeiros-ministros, conheceu 13 dos 14 presidentes norte-americanos que exerceram o cargo desde 1952 e que o seu reinado equivale a 30% da história dos EUA. Podia referir o quanto o Reino Unido mudou, o quanto o seu império se alterou, a independência das colónias, a Commonwealth, os anos 60, a música, a moda, as novas tendências, formas de estar e de pensar não mais condicionadas pelo espírito de sacrifício que a guerra exigiu; a entrada do Reino Unido na CEE, a inflação e a estagnação económica nos anos 70, a descrença na grandeza do reino, o reposicionamento de Londres como capital financeira do mundo, a riqueza que a diversidade cultural trouxe (e os problemas também); o colapso da URSS, a expansão da liberdade e da democracia para Leste, a abertura da China, o consumismo e a reflexão que hoje fazemos sobre os seus efeitos nas nossas vidas e na economia; a ecologia e as novas tecnologias como a inteligência artificial. Podia escrever sobre o seu último serviço público ter sido o convite à nova primeira-ministra para que formasse governo; o quanto se preocupava com a unidade do Reino Unido e o ter estendido além do necessário a sua permanência em Balmoral, ao invés de regressar a Windsor. Podia referir o significado político dessa decisão. Podia expor uma outra lista interminável de eventos, outros o farão melhor que eu, mas o que quero realçar na vida de Isabel II, o que me a leva a escrever sobre ela não é aquilo porque que passou, não o que viveu, mas como viveu a longa vida que teve.

A contenção, o dever cumprido, o saber calar-se, a palavra certa no momento certo, a benevolência dos firmes, a educação, a alegria que apaga o ressentimento, o respeito pelos outros que fez nascer o respeito dos outros por ela. Uma vida que nos mostrou para que serve a vida. Quando se confunde prepotência com força, má educação com coragem, falar alto com firmeza; se mistura poder com ter em vez da possibilidade de fazer, em que intervir é falar e não pensar, em que se não partilharmos nas redes sociais onde estivermos não vale a pena termos estado porque o que os outros pensam de nós é mais importante que a nossa satisfação pessoal, enquanto somos assolados por tudo isto, a vida de Isabel II mostra-nos que não tem de ser dessa forma. Que pode ser diferente. Que pode ser durável. Que calar não é aceitar, mas desvalorizar; que o silêncio reflecte e fere menos que a palavra vã, que agir também é aguardar, que conseguimos ser o que somos com respeito pelos outros e o respeito destes por nós. É verdade que Isabel II tinha a vantagem de ser rainha, que o seu comportamento e atitude dificilmente vingam na labuta do dia-a-dia. Pode ser, mas se assim for esse será um dos aspectos positivos da monarquia constitucional que não podemos deixar de considerar e a razão que me leva a discordar do Alberto Gonçalves. Contrariamente ao que sucedia no passado, um monarca constitucional não se bate pelo lugar e a sua posição acima do poder permite que se posicione por cima das tricas políticas. Portugal talvez ganhasse algo com isso. Talvez.

Este é o ponto que cabe realçar. Isabel II foi rainha de outro país, mas enquanto aprendia ensinou-nos muito. Podia ter escrito um texto sobre um qualquer outro acontecimento com implicações políticas mais relevante que este. Mas não podia deixar passar esta altura e esta crónica teve mesmo de ser escrita.

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