Para o bem e para o mal, não tenho, nem nunca tive, twitter, facebook, instagram ou qualquer coisa assim. Não me estou a gabar de nada. Acontece apenas que, por razões óbvias, ignoro o que perco e sei muito bem, conhecendo a minha facilidade em viciar-me, aquilo que ganho e é cada vez mais precioso: tempo. Leio, no entanto, alguns poucos blogs – sempre os mesmos –, muitas vezes com proveito. Os blogs foram, quando apareceram, como se diz, um “espaço de liberdade”. E muitos continuam a sê-lo, sobretudo quando se aproveitam dessa óptima possibilidade que são os textos curtos e incisivos.

Vem esta pouco interessante confidência a propósito de algo que li no outro dia num dos blogs que visito regularmente, O Insurgente, onde encontrei um post de Rui Rocha, “As melhores frases durante/sobre a crise pandémica”. Como o título indica, trata-se de uma antologia de frases proferidas nestes últimos meses, uma antologia susceptível de uma actualização quase diária: basta pensar nas recentes declarações de António Costa sobre o tratamento do coronavírus pelos antibióticos ou no auto-elogio da Dra. Graça Freitas sobre a “coerência” da DGS, em presumível resposta a um sacudir da água do capote por parte de um dos candidatos a sucessor do Dr. Costa à frente do PS, Fernando Medina.

Mas, por mais incompleta que seja a lista, ela dá-nos indiscutivelmente uma boa ideia da atmosfera geral de confusão em que vivemos. Quando foi declarado o estado de emergência, escrevi aqui que essa confusão era, em larga medida, inescapável e que ela relevava, pelo menos em parte, de uma fragilidade generalizada por todos partilhada. Não mudei completamente a minha opinião, mas hoje em dia tenderia a julgá-la declaradamente insuficiente. Há demasiados traços que nos levam necessariamente mais além de uma tal explicação. Há mesmo uma criação de caos que ilustra um modo de acção singular do espírito humano e que está longe de se deixar por inteiro reduzir à tal fragilidade.

As frases citadas n’O Insurgente podem ser divididas em vários tópicos: a incerteza e a ignorância; a preocupação de servir o governo; a pura e simples idiotice; o delírio; o descaramento; a alarvidade; a mentira; e a pseudo-habilidade. Como é fácil de imaginar, nenhum destes tópicos é estanque e uma frase pode conter em si vários deles simultânea e harmoniosamente.

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Por razões várias, o tópico filosoficamente mais interessante é o da incerteza e da ignorância. Estou muito longe de querer transformar a Dra. Graça Freitas numa espécie de bode expiatório da nossa desventura colectiva, mas a verdade é que ela, em virtude da posição que ocupa e da exposição pública que é a sua, fornece um vasto número de exemplos daquilo a que me refiro. (Convém no entanto notar que aquilo que ela disse foi em geral dito também por outras figuras menores deste período.)

Senão vejamos. Em tempos idos, declarou: “Há baixíssima probabilidade de vírus em Portugal. A OMS está a exagerar um bocadinho”. Disse também: “Apelo para que visitem os lares: sejam solidários”. É de admitir que estas duas frases testemunham apenas de um estado de ignorância que é a consequência natural da incerteza cognitiva. A ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, exprimiu uma idêntica ignorância, sob a forma de uma optimista e obscena esperança: “A pandemia pode ser uma oportunidade para a agricultura portuguesa”. Mas Graça Freitas usou também indiscutivelmente da incerteza e da ignorância para servir o governo e o poder. Como toda a gente se lembra, quando não havia máscaras em número suficiente para os profissionais da saúde, não hesitou em desaconselhá-las à população em geral: “Não usem máscaras. As máscaras dão falsa sensação de segurança”. Quando eram poucos os testes: “Testes? Testes negativos dão falsa sensação de segurança”. Quando se tratava de comemorar o 25 de Abril na Assembleia da República: “Não é necessário usar máscara. A AR é um edifício grande”. Quando a preocupação era tentar pôr a economia a funcionar um pouco: “Nos aviões não é necessário distanciamento porque as pessoas só olham para a frente”. E: “O que nós queremos é que venham muitos estrangeiros”. Todas estas afirmações exibem o alegre convívio da incerteza e da ignorância com a preocupação de servir o governo. Mas por vezes acrescenta-se igualmente o delírio: “Que cada um de nós recorra à horta de um amigo. Não açambarquem”.

António Costa, pelo seu lado, mente com facilidade – e, notam os aficionados, com habilidade. Lembram-se? “Até agora não faltou nada no SNS e não é previsível que venha a faltar”. Ou então, o seu velho mantra: “Não vai haver austeridade.” Com a pequena correcção, que contradiz o carácter taxativo da afirmação anterior: “É muito difícil fazer previsões quando o mundo mudou em 360 graus em dois meses”. Ó habilidade!, ó versatilidade! Mas a habilidade não é exclusivamente uma propriedade sua. O grande debate político em Portugal centra-se numa única questão: qual dos dois é o mais hábil – Costa ou o Presidente da República? É que, como escreveu alguém há uns anos, comentando um qualquer artigo do Observador, Marcelo é capaz de fazer vinte e cinco fintas sucessivas no espaço reduzido de uma cabine telefónica – sem depois conseguir abrir a porta e sair. Resta que é um grande esquematista: “Já tenho um esquema para ir à praia”. Uma visão tão lúdica das coisas não lhe tolhe, no entanto, a solenidade oportuna: “Nesta guerra, ninguém mente nem vai mentir a ninguém. Isto vos diz e vos garante o Presidente da República”.

Voltemos ao essencial. A ignorância e a incerteza, prévias à sua corrupção pelo interesse político, são constitutivas da ciência. E esta pandemia devia permitir que tomássemos consciência deste aspecto fundamental. Um editorial de um número recente da Spectator lembra a justo título que diferentes governos seguiram diferentes políticas contra a pandemia seguindo conselhos distintos de vários grupos de cientistas, que muitas vezes, de resto, foram mudando de opinião. Não há nenhuma entidade monolítica colectivamente denominada “Ciência”. A controvérsia – não um mágico consenso – estrutura o conhecimento científico, mesmo que se trate de controvérsias que têm por telos um acordo final fundado em provas objectivas. A situação presente devia mostrar isso na perfeição. E deveria esclarecer-nos, retrospectivamente, sobre o profundo enviesamento de muito do que se diz sobre o “consenso” em torno do “aquecimento global”. Mas seria sem dúvida pedir demais. O discurso político-mediático é profundamente ignorante dos processos das ciências e das discussões encetadas pela filosofia desses mesmos processos. Quando muito, boiam à superfície expressões como “paradigma” e “corte epistemológico” (que, de resto, quase se confunde com o de “chicotada psicológica” do meta-futebol das televisões). Que a ciência, como a vida segundo Sá de Miranda, “está mal segura”, é algo que militantemente se nega todos os dias, tal a nossa vontade de acreditar.

PS. Praticamente com as mesmas atitudes de espírito com que se discute em Portugal a pandemia, decide-se o futuro da TAP, a nossa “companhia-bandeira”. Tanto quanto consigo perceber, os privados conseguiram, antes da pandemia, várias melhorias. Com a pandemia, foi, como em todas as outras companhias aéreas por esse mundo fora, a catástrofe. Logo apareceram, chefiados por Pedro Nuno Santos (ah, estes aspirantes a sucessores de António Costa…), os usuais cultores da omnipotência do Estado – com o seu misticismo, desejo de poder e de empregos fáceis para os seus – a exigirem a sua nacionalização, tudo isto embrulhado no mais serôdio pseudo-patriotismo, o último refúgio dos mais acabados imbecis que se pode imaginar. Cecil Rhodes dizia que, se pudesse, anexava as estrelas. Os “nacionalizadores”, se pudessem, como me lembrou a minha mulher, nacionalizavam o Benfica. O que, bem vistas as coisas, até fazia algum sentido. Pelo menos, podia-se pôr António-Pedro Vasconcelos, um dos mais reputados especialistas em ambas as matérias, à frente das duas gloriosas bandeiras.