Vendo bem, todos nós temos projectos para várias vidas. E o tempo nunca chega para tudo aquilo que queremos fazer. Até que, de um momento para o outro, a vida muda. Literalmente; assim. Uma pessoa “adormece”, enquanto se “passeia” pelo sonho. E, quando “acorda”, encontra-se fechada num pesadelo. Se for preciso, sem sequer imaginar qual é a porta de saída. Eu acho que é nessas alturas que afirmamos – com ênfase e de forma vencida – que a vida muda de um dia para o outro. Que damos conta que controlamos muitos menos coisas do que, duma forma ilusória, sempre imaginámos controlar. E que não percebemos que o azar não é aquilo que de mais aleatório temos na vida. Na verdade, são tão inesgotáveis as oportunidades para termos azar, e desafiamo-las tantas vezes, que a sorte – essa sim – é o que de mais aleatório parece existir. Por mais que furemos por entre milhares de improbabilidades e a procuremos com sucesso. E por mais que o façamos sem termos, sequer, consciência disso; muitas vezes. Somos todos pessoas de sorte; muito mais do que pode parecer. Às vezes é preciso que ela mude de um dia para o outro para percebermos melhor que a vida é um “estado de espírito”. Que resulta da forma como reagimos e a aproveitamos quando ela nos levanta ou nos derruba. E talvez seja isso que nos leve a supor, quando aquilo que ela nos faz sentir é súbito e é novo, que a vida muda de surpresa. E quase de forma desleal para connosco. Sobretudo quando a nossa vida se transforma de um dia para o outro. E nos contraria. Ou surpreende. Ou nos magoa, simplesmente.

Na verdade, sempre ouvi dizer que a vida muda de um dia para o outro. E sempre achei que o tom com fui escutando essa advertência era mais ou menos medroso. Trazia consigo uma aragem do género: “Tem cuidado!” Ou um conselho: “Previne-te! A vida não é de confiança…” Como se devêssemos ter receio das mudanças que a vida nos traz. Sentidas desta forma, as mudanças – sobretudo aquelas que se dão de um dia para o outro – parecem colocar a vida sob a intimidação, furtiva, de uma emboscada que se dará, inevitavelmente, quando menos se espera. Ou de um perigo que se insinua de forma mais ou menos permanente. Como se, por vezes, as mudanças fossem um obstáculo à segurança. Um risco ou uma ameaça. A cisma com que se deve olhar para o imprevisto, para os imponderáveis, para a surpresa ou para o espanto.

Mas a vida não muda só de um dia para o outro. Muda a todo o momento! A verdade é que, por distracção (ou por egoísmo, claro) só damos conta da forma como ela se faz duma incansável mudança quando a vida muda, para nós, de um dia para o outro. E, de repente, ao pé da forma como ela muda e muda, nos fica a sensação que, no meio de tanta mudança, às vezes é quase constrangedor que a nossa vida seja, estranhamente, monótona. E que muito do que se passa com a vida se dê devagar. É o ritmo pachorrento que a nossa vida acaba por ter – que estranho que isto é! – que nos leva a repetimos muitas vezes que o tempo passa depressa. Qualquer coisa como: quanto mais devagar ela se vive, mais a vida passa depressa. Ao mesmo tempo, a agitação da vida de muitos de nós ajuda a perceber que quanto mais é o depressa maior o devagar. Como se o muito devagar e o depressa demais fossem formas de fugirmos das mudanças que a vida nos traz e de crescermos com elas. Se a mudança fosse, assumidamente, um compromisso mais constante m, a convicção de que se passam mais coisas na nossa vida talvez nos permitisse ter a sensação de vivermos a vida com mais tempo para ela. Degustando-a, como devíamos. E vivendo-a melhor.

Seja como for, há verdades que se revelam, perdas que se precipitam ou acidentes que nos atropelam que se parecem com uma avalanche que se desmorona sobre nós. Que fazem com que, de facto, de um momento para o outro, tudo mude. Ficamos mais frágeis. E combalidos; por tudo aquilo que imaginávamos ser impossível de nos acontecer. Mas por mais que a vida, nessas circunstâncias, mude de um momento para o outro, é a forma como somos capazes de transformar essas mudanças – tantas vezes tão absurdas, tão profundas e tão injustas – em oportunidades, que nos tornam merecedores da vida que temos. “Toda a vida é composta de mudança”. Mas mais  intensas que as mudanças com que a vida se compõe são as formas como mudamos para lidar com as mudanças que a vida nos traz . Mesmo que a vida mude de um dia para o outro.

Ganhar a vida não é, por isso, ganhar à vida. E não é – não pode ser – ser-se reconhecido pelo trabalho que lhe dedicamos, todos os dias. Ganhar a vida é sermos capazes de nos tornarmos mais vivos com cada mudança que a vida nos traz. De mudar para cada mudança! Transformando, se for o caso, o azar em sorte. E a dor em redenção. Mudando para aquilo que nos muda mais do que a forma como a vida parece mudar; por vezes, de súbito e de surpresa. Mais capazes de pensar a vida de fio a pavio. Mais reconhecidos com ela. Mais gratos para com aqueles que nos fazem querer estar vivos. Mais vivos, ainda, depois das mudanças que a vida nos traz. Mesmo quando elas se dão de um momento para o outro.

A vida não muda de um dia para o outro. Muda todos os dias. A todo o momento. Mas, às vezes – quer à escala global como para cada um de nós próprios – precisamos das mudanças que ela nos traz, de um dia para o outro, para acertarmos o passo com a mudança que, todos os dias, parecemos afastar de todos nós. Como se mudar não fosse o mais seguro que se pode ser diante de todas as  mudanças que, um dia atrás do outro, a vida nos dá.

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