Este título é, propositadamente, provocatório; em substituição de zoomização podia aparecer qualquer outra palavra ou expressão como ensino a/à distância, mas a questão conceptual é delicada, primeiro teríamos de dirimir a questão linguística do a ou do à, sobre a qual nem os linguistas se entendem, depois porque falar em ensino a/à distância nos levaria a um verdadeiro carrossel de conceitos em que ninguém se entende e todos julgam ter razão.

Há cerca de um ano participei numa reunião promovida pela Universidade Aberta e alargada a umas boas dezenas de “especialistas” em ensino a/à distância e ao fim de três horas ainda não se tinha consensualizado de que estávamos verdadeiramente a falar. Claro que se tratava de discutir as soluções expeditas que cada instituição de ensino superior tinha adotado para ultrapassar as limitações da pandemia e das restrições ao ensino presencial, quase todas tendo como base a plataforma zoom, daí a zoomização.

Nesta, como noutras situações, costumo socorrer-me de uma frase célebre do senhor Deng Xiaoping, a quem é atribuído o mérito de ter iniciado a modernização da China, “Não interessa se o gato é branco ou preto, importa é que apanhe os ratos”. E, assim, passei a utilizar para consumo próprio e dos que me são mais próximos a designação videopresencial para me referir ao formato que passou a ser utilizado de forma generalizada pelas instituições de ensino superior na modalidade síncrona, em tempo real, ou assíncrona, de acesso on demand, quando os estudantes não podem seguir as aulas em direto.

Independentemente dos conceitos de ensino a/à distância, todos nos entendemos quando falamos desta modalidade assente num princípio simples de comunicação remota que permite que a gravação em tempo real num qualquer contexto, seja visionada por quem está noutro, eventualmente a milhares de quilómetros, com a possibilidade de interação mútua. Para quem não pode seguir as emissões em tempo real, há sempre a possibilidade de aceder aos conteúdos de forma simples e segura, para tanto bastando clicar num link e usar uma password.

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O formato comprovou a sua eficácia e com mais ou menos percentagem de aulas tem continuado a ser o veículo fundamental de comunicação entre docentes e estudantes. Entretanto, o debate paralelo vai fazendo o seu caminho, com acirrados opositores da modalidade, declarações de amor eterno ao ensino exclusivamente presencial e outros apelando a que se olhe para a realidade antes de sentenciar de morte algo que é impossível esconder – o ensino não voltará a ser o mesmo e seria estulto pensar que se pode ignorar o salto quântico que a pandemia trouxe em matéria de ensino não presencial.

O que aconteceu foi uma espécie de tsunami que rompeu com as grilhetas que acorrentavam as escolas a uma modalidade de ensinar e aprender claramente obsoleta e que muitos dos que se dedicam ao ofício de ensinar há muito vinham denunciando como esgotada e a precisar de reforma ou mesmo reinvenção.

Se compararmos a evolução tecnológica das atividades em geral, ocorrida nas últimas décadas, com a das escolas, facilmente se concluirá que estas caminhavam com largo atraso e que nalguns casos o ensino continuava a manter todas as características de séculos atrás, enquanto o mundo evoluía e os estudantes se transformavam.

A propósito, partilho uma história verídica ocorrida há cerca de três décadas, quando em funções autárquicas visitava uma escola do ensino básico para avaliar das suas necessidades de remodelação urgente. Uma das professoras confessou-me que trabalhava lá desde a inauguração e que estava à beira da reforma sem que a escola nunca tivesse sofrido qualquer beneficiação nem atualização do equipamento. E dizia-me a senhora, “nesse tempo os alunos não tinham nada em casa, nem livros, nem mapas, nem casa de banho, nem outras coisas que para eles eram novidade e os entusiasmavam, hoje têm tudo e a escola continua na mesma”.

Nos últimos 30 anos progrediu-se muito, mas ficou-se muito aquém do necessário e a história daquela professora continuou a ser atual nos tempos da internet, das redes sociais, da comunicação instantânea, as escolas continuaram olimpicamente a viver sobre si próprias, fechadas nos seus muros e impossibilitadas de usarem as novas ferramentas por falta de autorização ou, no caso do superior, porque não havia condições de acreditação de cursos a/à distância ou porque tinham sido acreditados como presenciais e não podiam inovar sob pena de serem “desacreditados”.

Entretanto, foi publicada legislação sobre a organização e funcionamento de cursos de ensino a/à distancia, mas nem teve tempo de ser experimentada, pese embora o facto de quase toda a comunidade do ensino superior a ter considerado como impraticável por a mesma obrigar a uma subordinação metodológica à Universidade Aberta, quando as instituições já se sentiam capazes de avançar com cursos nesse formato, utilizando recursos próprios e fazendo jus à sua autonomia.

Foi então que a pandemia obrigou a esquecer tudo o que estava regulamentado e se abriram janelas nunca antes permitidas, num primeiro momento contra a vontade da administração, e que só foi possível porque muitas escolas já estavam preparadas, só não as deixavam, e em três ou quatro dias passaram a operar em sistema videopresencial, assim assegurando uma nova normalidade que permitiu não interromper cursos e manter o trabalho docente e as aprendizagens dos estudantes.

Naturalmente, a investigação se ocupará de apurar os benefícios e os prejuízos daqui decorrentes, mas o que ficou evidente foi que as maiores dificuldades resultaram da pobreza de muitas famílias, cujos filhos não tinham acesso a computadores, das insuficiências da cobertura de rede e da incapacidade de em tempo útil serem supridas todas as lacunas que tornaram ainda mais evidente a diferença entre alunos oriundos de meios socialmente diferenciados.

Mas é preciso não tomar “a nuvem por Juno”, a pandemia e as novas modalidades videopresenciais não acentuaram as desigualdades escolares, apenas as tornaram mais notórias num país em que um quinto da população vive abaixo do limiar da pobreza. O que todos ficaram a saber e se torna mais difícil esquecer é aquele menino ou menina ou adolescente que não podia assistir às aulas, por não ter computador, mas que também não tinha que comer ou aqueloutro(a) que apenas ia à escola tomar a refeição que não tinha em casa. Em qualquer circunstância, estes jovens, com ou sem computadores, com ou sem ensino presencial, já eram discriminados e assim vão continuar, com ensino presencial ou noutras modalidades, enquanto o país for como o conhecemos.

Aqui chegados, importa olhar para o futuro, já que se acentuam os sinais do refluxo do tsunami e muitos começam a querer voltar ao conservadorismo pedagógico anterior fazendo tábua rasa de tudo o que se conquistou nestes meses de liberdade, ironicamente permitida pelo estado de exceção em que o país tem vivido.

Vozes oficiais e até sindicatos, infelizmente parece que estes estão sempre do lado mais conservador em matéria de evolução laboral, já decretaram o fim da experiência das escolas sem barreiras e o retorno acelerado ao presencial. Num país habituado ao excesso de regulamentação, basta uma circular para anular meses de experiências com muitos aspetos positivos, sem que aparentemente se reconheça às instituições, neste caso do ensino superior, o direito a pronunciarem-se e a manterem parte da sua operação por meios videopresenciais ou outros que permitam a deslocalização das atividades da sala de aula para os contextos de vida dos estudantes.

Claro que há um argumento forte, as condições de acreditação dos cursos, mas quando estes foram propostos não se imaginava a pandemia, nem a experiência que ela proporcionou a que convém acrescentar que a transmissão de aulas em regime síncrono com interação entre docentes e estudantes não contraria o essencial do velho modelo presencial, já que apenas algumas matérias podem ser assim lecionadas e todas as que são práticas exigem presença em contexto escolar ou profissional. Na verdade, há presença, há interação, apenas não há territorialização, mas esta tem vindo a ser substituída em todas as atividades e em todo o mundo por acessos remotos.

Veja-se o que se passa com reuniões, com provas públicas para defesa de graus, com grupos de trabalho de projetos de investigação ou outros nacionais e internacionais, tudo em regime videopresencial, com custos mínimos e resultados semelhantes aos anteriores. Não se trata de abandonar o presencial, mas apenas de incorporar nas atividades regulares das instituições, em todos os domínios, as vantagens que o videopresencial inegavelmente proporcionou de forma alargada.

Não é por acaso que muitos estudantes têm proposto às instituições que não abandonem as novas práticas, sobretudo os que vivem mais longe das escolas, ou frequentam ensinos pós-graduados e são trabalhadores estudantes, ou ainda os que vivem fora do território continental, nas regiões autónomas, ou mesmo no estrangeiro.

De facto, foram novas janelas de oportunidade que se abriram para os que já estudavam no ensino superior e, simultaneamente, permitiram captar novos públicos, que de outra forma não teriam acesso às universidades e politécnicos, e que correm o risco de se voltarem a fechar com prejuízo para quem delas tem vindo a usufruir e para o próprio país que tem um enorme défice de pessoas qualificadas.

Não se trata de tornar cursos presenciais, sem mais, em cursos a/à distância, apenas que cursos desenhados como presenciais possam incorporar nas suas metodologias de ensino-aprendizagem componentes que permitam o acesso remoto, em determinadas circunstâncias, mantendo a garantia da qualidade e abertas as janelas que a pandemia nos trouxe e que parece estar prestes a levar com ela, se nos deixarmos ficar de braços cruzados apenas a contemplar o refluxo da maré.

* O texto apenas reflete as ideias do autor