Numa entrevista à revista alemã Der Spiegel, em Agosto de 2017, o antigo operacional da Rote Armee Fraktion (RAF), Peter-Jürgen Boock, afirmou que «é uma merda ser um assassino» [Es ist scheiβe, ein Mörder zu sein].

Não será assim em todas as latitudes. A publicação Sábado dá a lume, na edição de 3 a 9 de Novembro de 2022, uma entrevista a Luís Gobern Lopes, em que o antigo terrorista das FP-25 de Abril passa em revista a sua carreira. As images d’Épinal são as de uma vida com uma profusão de aventuras e êxitos: mulheres, filhos, viagens e profissões. Nada falta. Quanto às suas actividades na qualidade de terrorista, Gobern Lopes não desilude. Descreve um assalto como «um recorde», que «rendeu nove mil contos, o máximo até aquela altura. Lembro-me porque no malote não cabiam as notas, começamos a pôr o dinheiro e aquilo não cabia [risos]» – risos?! Apesar de preparado para disparar e matar, Gobern Lopes faz saber que «A maior parte das situações de mortes em assaltos a bancos foram coisas que correram mal, nunca foram premeditadas.»

O mesmo não se passa noutros contextos. Por exemplo, quando da fuga do Estabelecimento prisional de Lisboa, integrado numa «equipa de cobertura», o antigo operacional das FP-25 descreve as suas funções: «Se começassem a disparar das torres estavámos ali… Quando o GNR saiu, a primeira rajada que mandei, de uma kalash, foi para cima… aliás ficaram lá as marcas na parede. O gajo, louco, continuou. E só não morreu porque se encravou a kalash e não saíram mais balas.» Neste caso, a «situação de morte», para retomar a expressão usada, resultaria não da premeditação, mas da confrontação – a tendência para o eufemismo não se revela apenas no âmbito da linguagem, é um modo de pensar. A inversão consuma-se na culpabilização de outrem. Uma vez que o Estado e as suas instituições obedeçam à organização terrorista não há «situações de confrontação» nem, por decorrência, «situações de mortes».

A outra possibilidade de se furtar à culpa consiste na desclassificação racional; um elemento da GNR que cumpre o dever a que está obrigado é louco. Outros casos há em que se verificam «situações de morte» – nas execuções. Ao contrário do que se poderia pensar, a premeditação está igualmente ausente do assassínio de quem é qualificado como traidor. A entorse da linguagem e dos conceitos é levada a cabo pela mudança de posição nas trincheiras. Tais execuções são acções «de defesa da organização»; ratifica-se lexicalmente a substituição dos valores: o axis mundi é o próprio colectivo terrorista. E, no mesmo passo, justifica-se o recurso defensivo e preventivo à violência. A gradação culmina na questão dos arrependidos. Gobern Lopes é taxativo, «Eles nunca se arrependeram de nada, é tudo mentira. São figuras amorais.» Está consumada a desumanização da vítima. Ao contrário do qualificativo «louco», que ainda pressupõe um modo deficiente do humano relativamente à norma, conservando por essa via uma ligação à humanidade, a figura amoral é de natureza diversa. Por essa gente, «eu não tenho qualquer respeito.» A destrivialização do juízo moral é completa: a vítima é o culpado. A morte dos arrependidos – exteriores à comunidade humana – já não constitui um homicídio em sentido próprio – a morte de um homem às mãos de outro. Talvez aqui se possa aplicar com pleno sentido a expressão «situação de morte».

O problema da morte constitui o ponto nevrálgico do terrorismo. O fanático no seu delírio pode não passar a fronteira do homicídio, o que caracteriza o terrorista é precisamente a decisão de o fazer. Aqueles cuja imaginação os põe a combater para instaurar na comunidade um ideal de justiça absoluta deparam necessariamente com o eventual sacrifício de vidas humanas. Por isso, já diversas vezes foi salientado que a morte determinante – o assassínio determinante – é a primeira, a que resulta da decisão sacrificial. O intento de transpor o absoluto sem mediações, na sua inteireza e de uma só vez para a realidade, possui um valor incomensurável com qualquer outro. A justiça deixa de ser feita com os homens e passa a sê-lo apesar dos homens, doravante reduzidos a quantité négligeable. Uma tal radicalização tem por consequência a destruição do conteúdo humano por mor do qual foi posta em movimento, desembocando assim na sua própria desfiguração. É no primeiro assassínio, no momento em que a supressão do próximo é justificada, e justificada em termos morais, que se verifica a inversão dialéctica que o terrorismo efectua. O amor pela humanidade leva o terrorista a matar seres humanos. Ninguém pode imaginar o que lhe custa fazê-lo. Sobre ele recai o maior dos sacrifícios: negar-se a si próprio, imolar o seu amor desinteressado, amputar-se dos sentimentos espontâneos e fraternos que o ligam aos outros. Matar é o supremo acto moral. A contradição é monstruosa, mas traz no bojo o antídoto. O passo que objectifica o ser humano torna-o ipso facto em material prático-inerte para levantar a torre que arrombará as portas do Céu. Depois da decisão primeira, o terrorista passa a engenheiro não de almas, mas de meros corpos, que começou por esbulhar da interioridade, do quid specificum humano – já não mata, constrói.

Toda a questão do terrorismo gravita em torno desta decisão primeira, somente a sua revogação põe termo a um modo de pensar às avessas e reintegra o terrorista na comunidade humana. Ninguém o pode fazer senão o próprio; nenhuma verdade moral pode ser extorquida. O processo tem nome: arrependimento. Ou, em vernáculo, admitir para si mesmo que ser um assassino é uma merda. O «anarquinho», alcunha de Gobern Lopes, nunca o reconhece. Ora foge ao problema, afirmando que «o que pode agora parecer absurdo na altura não era», quando o ponto é precisamente libertar-se do passado pelo reconhecimento de um novo valor que mostra o erro antigo, e o mal que dele saiu; ora se recusa a enfrentar a morte como tal. Quando a pergunta é especificamente sobre o sentido das mortes, o «anarquinho» pura e simplesmente não consegue responder de forma directa. Refugia-se numa tirada geral sobre «uma organização deste tipo, armada, só faz sentido num processo insurrecional ou numa revolução. Fora disso, passa a ser uma bola de neve que nunca mais acaba. Melhor, só acaba quando são todos presos. Há desvios que escapam ao controlo.» Ou seja, há organizações, há controlo e há desvios. Só não há pessoas – nem decisões. Fica assim vedada a possibilidade de um arrependimento especificamente moral. O arrependimento desautoriza o próprio Eu do passado, interrompe a continuidade e constitui o fundamento do pedido de desculpas às vítimas, ou aos seus familiares. Gobern Lopes, desenvencilha-se neste capítulo com a afirmação de que «aquilo que tenho dito é uma forma de também pedir desculpas às famílias das vítimas». Não é. Ou é tanto como uma morte é uma «situação de morte». O modo de pensar permanece o mesmo. E, mais à frente, a exteriorização vem corrigir o que poderia ter a aparência de uma interiorização «Se a pergunta for se eu acho que fui justamente preso, eu acho que sim. Querem a pergunta assim? Já lhes serve melhor?» A relutância, a má vontade, a transferência para os entrevistadores da responsabilidade do que acabou de dizer, testemunha o predomínio da exterioridade. Juridicamente, isto é, exteriormente, servir-nos-ia enquanto sociedade. Gobern Lopes não consegue perceber que o reconhecimento do «justamente preso» deixa a questão moral incólume no seu cerne. Por outras palavras, não lhe serve a ele. Nem a todos os que continuam enredados na malha das contas de mercearia, sejam elas as comparações com os processos análogos de organizações congéneres na Itália ou na Alemanha, sejam as comparações com o terrorismo da extrema-direita, sejam os impasses burocráticos dos processos. Depois da impunidade jurídica, política e social, o que sobrava era o problema moral, que, sendo fundamental, é inexigível. Sem o resolverem, tudo o que possam contar, por interessante que seja do ponto de vista histórico, é uma mera cortina de fumo: não se libertaram a si mesmos e por isso desoneram-se do reconhecimento devido às vítimas. Tudo o que possam contar não passa de abusões e fábulas.

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