É difícil que, depois do Relatório sobre os abusos sexuais na Igreja, agora apresentado, tudo fique igual, são as palavras de Pedro Strecht, o pedopsiquiatra que coordena a equipa que se constituiu para este trabalho, a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa. Como vejo isto, eu que faço parte da Igreja? Eu que entendo a Igreja como uma família? Quando a minha família está em questão eu também o estou. Nada que os meus façam me é alheio. Olho então para o que se passou e tento apurar responsabilidades, pois tanto é ladrão o que vai à horta como o que fica à porta. O que leva a cometer tais atrocidades? Onde é que eu estava quando tudo isso aconteceu?

Não falo hoje sobre as vítimas, 4.815, a maior parte virgens e inocentes, mas sobre aqueles que abusaram. A maior parte são sacerdotes. O que faltou a estes homens? Porque não foram amparados na queda? Faltou-lhes Companhia, em presença e inteligência. Não foi falta de fé, foi falta de razão.

E na ausência de uma presença amorosa, procuram a companhia de quem estava ali à mão de semear. E fizeram-no da mais vil maneira, sem medir consequências, cegos pelo imediato. Feitos como todos nós para o amor, por não o receberem não o puderam dar. Ativeram-se ao fácil. Deram e receberam apenas sexo. E, pior, geraram vidas profundamente feridas, muitas carregando até à morte uma cruz de contornos horrendos.

Entraram no seminário, muitos arrancados às famílias. E aqui a responsabilidade é também a de um sistema de ensino que levou muitos jovens a entrar no Seminário sem vocação, só porque seria a única forma de prosseguir os estudos. A vocação errada, a vocação falhada, as consequentes frustrações. E se a vocação era a de serem luz do mundo, foram antes sinal e causa de trevas e dores.

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Um homem pode viver sem sexo, mas não sem ternura, disse-me um dia um Bispo dos bons. É verdade, sem ternura as relações são desumanas, não geram humanidade. Os outros não são vistos como pessoas mas como coisas. E Deus, o sentido da vida, fica nas nuvens de uma teoria que nada tem a ver com a existência. Deus fica para as Homilias e está, como agora sabemos melhor com os resultados deste Relatório, ausente no que acontece. O que aconteceu foi mesmo diabólico. Uma espécie de Holocausto.

Faltou-lhes uma Companhia que os amasse, que lhes fosse presente nas longas noite de escuridão por que passaram. Mais concretamente, faltou-lhes uma Catequese Integral, uma familiaridade com todas as dimensões do ser humano. Mergulhados num ativismo infernal, sem tempo para o essencial, limitaram-se a “pregar”. O cristianismo desceu com eles ao meramente teórico. Faz o que ele diz, não faças o que ele faz.

Indo ao mais fundo, estes homens sem moralidade são homens que beberam uma catequese que separa Deus como sentido da vida, de Deus presente aqui e agora na existência. Lembro o saudoso Ratzinger que, ao olhar para o que restou de Auschwitz, perguntou: onde estava Deus?

Onde estava Deus quando aconteceram estes mais de 4.000 crimes?

Deus esteve onde sempre esteve e está. E se Ele não foi evidente nestes abusos não foi por não estar presente. Quem não O teve presente foram aqueles que não souberam reconhecê-Lo nos meninos e meninas que tinham em frente. Como os coveiros do Holocausto não souberam ver a identidade dos condenados.

Tudo isto foi possível porque o Deus apreendido era para eles um Deus teórico. Era como se fossem ateus. E neste ponto o que aqui também perturba é o facto de terem usado e abusado do nome de Deus em vão – isto é, usaram o nome de Deus como justificação dos seus actos. Uma das vítimas, diz o Relatório, reconheceu que teve que consentir porque o senhor padre era “a voz de Deus”. Abusar de crianças é visto por qualquer razão saudável como uma imoralidade.

Mas o que será uma razão saudável? É uma razão que não desliga nada da existência. É uma razão que não se aliena em ideologias mas só descansa ao encontrar uma explicação que tudo tenha em conta. Esta razão, sabemo-lo, encontrou a sua plenitude no Cristianismo, que nada põe de lado. Um Cristianismo que mede a moralidade pela incidência de Deus, sentido da vida, na existência, aqui e agora.

O que esteve presente nestes sacerdotes foi uma radical ignorância de si e do mundo. De si e dos que, nessa mesma ignorância estiveram, paradoxalmente, a seu cargo. Tem pai que é cego, e é verdade. Mas aqui há que ir mais fundo e reconhecer a paternidade mostrada por muitos que em condições análogas decidiram ser humanos.

Esta é a Igreja a que pertenço. Há quase 3 mil anos santa e pecadora a mostrar a humanidade dos homens. Numa História onde todos os vales e cumes são meus. Onde vejo o que vai à Horta e o que fica à porta como sendo feitos da mesma massa e decide apostar no presente numa razão que tudo abraça. Os criminosos, as vítimas, e a igual condição de uma liberdade que lembra ou esquece o sentido de tudo, de cada gesto.

A minha moralidade joga-se agora no que fazer com os dados que hoje conheço.

E oiço que todos estes tristes casos mostram ou revelam, na tortura em carne ainda viva, uma fenomenal e infeliz falta de fé. Mas a verdade é que se trata, sim, de uma grande falta de “razão”. Desde o iluminismo que andamos coxos porque nos enquistamos numa razão cega, que desiste de entrar no desconhecido, que não enxerga a existência como o campo onde tudo se joga.  «Também aqui estão presentes os deuses», lembrou e bem Heraclito.