Não fosse a forma severa como eles acabam por ser repreendidos, e afirmaria (sem reservas) que gosto das pessoas que se levam a sério. Eu sei que, muito por influência de uma atmosfera judaico-cristã com que todos crescemos, o sério e o sisudo se emaranham demais. Mas parece-me que as pessoas que se levam “muito a sério” não acabam por ser objecto de um olhar crítico por serem mal-humoradas. Elas não só acabam por ser, assumidamente, sisudas como enredam aquilo que são em tantas teias de justificações que, no fundo, quando falamos de alguém que se leva demasiado a sério estaremos a referir-mo-nos a uma pessoa que se constrói como se fosse uma imagem. Que põe uma máscara sobre outra. Que está longe de ser transparente. Ou, simplesmente, verdadeira. Os que se levam demasiado a sério serão, portanto, falsos. Mesmo quando se embrulham em verdades convenientes. Logo, o demasiado sério é uma forma de não se ser honesto.

É claro que a transparência e a espontaneidade infantil foi, desde muito cedo, censurada em todos nós. Como se uma ideia de urbanidade, ancorada na boa educação, não suportasse o respeito pelas pessoas e, ao mesmo tempo, toda a verdade sobre nós que elas merecem. Sermos bem educados terá representado terem-nos ensinado a ser um bocadinho esquivos em relação à verdade. A colocarmos “filtros” nela. Ou a crescer fazendo tangentes àquilo que pensamos ou sentimos, quando muito. Por isso mesmo, levar-mo-nos a sério pode muito bem ser sermos sérios, no sentido de sermos honestos connosco próprios. E, portanto, vendo por aí, termos modos e maneiras, claro, sem que não deixemos de aceitar que as nossas verdades vão a sufrágio em vez de se corromperem pelo silêncio. O demasiado que se acresce ao sério, distinguindo aqueles que se levam a sério dos que se levam muito a sério, será o barómetro da mentira. O sério — o, simplesmente, sério — a coordenada da verdade. Se for assim, eu entendo as reservas em relação a quem se leva demasiado a sério. Mas continuo a insistir a sensatez de nos levarmos a sério. De nos conhecermos. De sermos verdadeiros com aquilo que somos e com o que sentimos. De desabotoarmos o coração e misturarmos os sentimentos com tudo o que discorremos sobre as mais diversas coisas. Porque talvez só mesmo desse modo nos tornemos mais pessoas. Vendo bem, boas pessoas.

A diferença entre quem se leva a sério e quem se leva demasiado a sério é que as pessoas sérias são capazes, no limite, de se rir de si próprias. O que quer dizer que o olhar crítico que lançam sobre alguns dos episódios que protagonizaram quer dizer que já os pensaram. Que estão “noutra”. Que estão “além”. Que, entretanto, já cresceram, simplesmente. E as pessoas que se levam demasiado a sério parecem nunca se enganar e raramente ter dúvidas.

Seja como for, parece-me que vivemos num tempo em que se repete muito a expressão “aceita-me como sou”. Como um slogan que fica bem e que parece fazer a ponte para o que é sério. Como é que nos podemos aceitar como somos sem nos conhecermos talvez seja o busílis da questão. Sobretudo num tempo em que as pessoas compõem a sua imagem ancoradas em muitas frases feitas, indo do “aceita-me como sou” ao “querer ser diferente”, por exemplo. Seríamos todos diferentes se nos aventurássemos a ser como somos. Logo, ser-se diferente num contexto como esse talvez seja o reconhecimento de que tentamos chegar à linha da meta por atalhos. O que acontece quando nos levamos, simplesmente, demasiado a sério.

“Aceita-me como sou” nem sempre encontra num “aceito-me como sou” uma correspondência indispensável. Às vezes, esperamos que os outros nos aceitem quando, no fundo, pontuamos de reticências secretas aquilo que somos. Mesmo quando lhes pedimos que aceitem aquilo que temos de mais inconsistente e de mais feio, aspectos que, ao contrário daquilo que lhes pedimos, nós acabamos por não aceitar. Ou por reconhecer que são erros que se repetem muito por culpa da forma preguiçosa, pouco verdadeira e pouco humilde como os fomos assumindo e levando a que se esquivassem à mudança.

“Conhece-te a ti mesmo” não é só nem uma máxima grega nem uma ideia grata à psicanálise. O confronto daquilo que sou com o que imagino que possa ser é, também, o modo como, a seguir, destrinçamos entre as nossas verdades convenientes e a verdade um “vou por aqui!”. No fundo, será sobretudo uma fórmula mais sintética que expressões como “pôr verdade na vida” talvez queiram dizer. Mas aceitarmo-nos como somos parece ter, regra geral, qualquer coisa de resignação. Como se observa, por exemplo, na forma como se usa, muitas vezes, em expressões tais como: “Quando me conheceste já sabias como eu era”, que não são nem um incentivo à transformação de uma pessoa nem um “aceita-me como eu sou” humilde de quem espera, com transparência, ser amado como é.  Aceitarmos-nos como somos não é o princípio da imutabilidade humana. Será levarmo-nos a sério, claro. Mas é, sobretudo, o ponto fixo como que nasce uma alavanca. Conhecermo-nos a nós próprios significa crescer.

Quando é nos aceitamos como somos? Quando ousamos conhecermo-nos a nós próprios. (Na verdade, como nos reconhecemos naquilo que somos e, em consequência disso, naquilo que fazemos). Quando aceitamos, entre aquilo que somos capazes de fazer, o que nos orgulha mas, também, as nossas mais furtivas fragilidades, os nossos erros e os nossos falhanços. E quando assumimos o “vou por aqui!” que nos leve à transformação e às mudanças. “Aceita como sou” é um olharmo-nos ao espelho. E sentirmos, também, o pulso à forma como nos vêem ou nos conhecem. E perguntarmo-nos se é “só” isso que queremos ser. É sermos quem somos e não tanto aquilo que imaginamos que “temos” que ser. Mas esperar de quem nos aceita os argumentos indispensáveis que nos ajudem a ser melhores. “Aceita-me como sou” talvez queira dizer: “traz-me para o melhor de mim”. Ajuda-me a renascer de cada vez que me conheço melhor. E, dessa forma, sempre que vou mais além. Haverá coisa mais séria do que isso?…

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