Passado mais de um mês em casa sem quase ver os filhos e os netos, estou quase a dar o grito do Ipiranga.

Reconheço que de início foi bom este isolamento, como parecem demonstrar os resultados obtidos. Pelo menos, deu tempo aos hospitais para melhor se prepararem e não há dúvida que resultou, não houve o descalabro que aconteceu aqui ao lado em Espanha, ou em Itália, ou mesmo em Inglaterra e nos Estados Unidos.

No entanto acho que chegou a altura de recomeçar a fazer a vida normal.

Por várias razões.

Sabemos que a economia tem vindo a degradar-se e temos a certeza de que alguns pequenos negócios não vão ter hipótese nenhuma de recuperar se isto dura muito tempo. Alguns não têm mesmo possibilidade nenhuma de ressuscitar, mesmo que eventualmente abrissem já, porque as regras impostas para a reabertura são incomportáveis para o seu negócio.

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Mas não é disso que eu queria tratar agora.

Trata-se de um problema pessoal, mas que sei também estar a afetar muitas pessoas como eu. Sei do que falo porque faço voluntariado há muitos anos numa associação de combate à solidão. Mas agora sinto na pele.

Sinto que se passar mais algum tempo o problema se vai agravar com sérios danos psicológicos para muita gente. Sei que há situações muito mais graves, como pessoas doentes, internadas nos hospitais em completo isolamento, em lares de idosos sem quaisquer visitas, outros em casa sem qualquer companhia, o que não é o meu caso. E outras situações porventura ainda mais penosas.

Sei também que a abertura pode acarretar mais problemas e pode haver um retrocesso. Mas, entretanto, os serviços de saúde estão mais bem preparados.

Também tenho a plena consciência de que este isolamento foi para nosso bem e nossa própria proteção. Agradeço por isso e agradeço também aos meus filhos que ajudaram a manter-nos isolados, evitando o contato físico e incentivando-nos a cumprir as regras recomendadas.

Mas chegou a altura de dizer basta. A alternativa é perder a alegria de viver e a vontade de continuar.

Se começarmos a abrir, podemos apanhar a doença e vir a morrer dela, não sem passar por um período de internamento sem visitas e sem uma mão amiga que nos conforte. E depois disso, ser metido num saco de plástico e seguir para o crematório sem nos podermos despedir de ninguém.

É um risco, mas um risco calculado e no meu caso totalmente assumido porque entre isso e ficar por tempo indeterminado sem a companhia dos filhos e dos netos, da restante família e amigos, acabando por ficar  cada vez mais triste e desalentado, venha o diabo e escolha.

Se voltar à normalidade implicasse riscos para os mais novos e pusesse em risco os nossos filhos e netos, isso sim, seria razão para me fechar em casa sofrendo com gosto todas as consequências. Seria mesmo uma razão para viver com alegria e estímulo esse mesmo isolamento. Mas não é esse o caso. Aliás não me canso de dar graças a Deus por este malvado vírus não afetar os mais novos. E por isso mesmo digo que assumo o risco porque o risco é meu.

Pode alguém argumentar que, se deixar de me isolar, posso pôr em risco outras pessoas vulneráveis. É verdade, e isso também me preocupa, mas, assumir o risco não significa passar a ter atitudes irresponsáveis, pelo contrário, respeitarei sempre as normas indicadas, mas é óbvio que, mais tarde ou mais cedo, vamos ter que arriscar e é prova disso a próxima abertura do comércio, dos restaurantes, das praias e outras aberturas faseadas.

Com a abertura, provavelmente vai haver um aumento dos danos e não sabemos quanto tempo isto vai durar. Estamos todos a navegar em águas desconhecidas mas vamos aprendendo alguma coisa com a experiência, embora muito à nossa custa e principalmente à custa dos que infelizmente já adoeceram e dos que já morreram.

No entanto há uma altura em que temos de pôr nos pratos da balança, por um lado os benefícios do isolamento e por outro os prejuízos causados por esse mesmo isolamento prolongado.

Chegou a altura das nossas lideranças tomarem decisões que nos deem esperança de voltar a viver as nossas vidas. Certamente ouvindo outras pessoas sensatas, especializadas em várias matérias, cientistas sensatos e que não nos venham dizer que isto até é um vírus bonzinho que só mata velhos, matemáticos com previsões catastróficas de crescimento exponencial da epidemia que felizmente não se vieram a verificar, responsáveis de saúde que disseram e se desdisseram sobre o uso das máscaras ou de outros que afirmaram que afinal este vírus só abrevia em alguns meses a vida de alguns idosos que pouco mais teriam a esperar desta vida, e outras opiniões semelhantes.

Não é altura de divisões e temos razões que justificam que acreditemos nos nossos governantes, os resultados obtidos até agora não são desanimadores em comparação com outros países semelhantes, mas até quando vamos ficar à espera que isto melhore? Até termos uma vacina? Mas se isso pode demorar meses ou até anos, será que vamos aguentar? E se aguentarmos, será que vamos voltar a ter alguma razão para viver? Ou sairemos disto já desalentados e sem alegria de viver?

Claro que eu pertenço a um grupo de risco pela idade que tenho, aliás como muitos outros em circunstâncias muito piores, como alguns que já foram abandonados pela sua própria família num lar de idosos e agora estão completamente isolados à espera do triste fim da sua vida, sem sequer ter a presença de um filho ou familiar próximo.

A todos nós que temos mais idade pode acontecer o mesmo e nessa altura não podemos voltar para trás. O carinho e a companhia que estamos a perder agora não voltarão mais.

Ninguém previu esta situação e ninguém sabe o que se seguirá, mas não será o fim do mundo.

Nunca nas nossas vidas aconteceu nada semelhante, nem sequer nas vidas dos nossos pais ou mesmo dos nossos avós, caso contrário estaríamos mais bem preparados. Mas isso não quer dizer que não possamos aprender, e muito, com esta nossa grande dificuldade.

Muita gente está a morrer, mas como já disse e temos verificado, têm sido poupados os mais jovens, o que não acontece nas guerras e nas catástrofes naturais. É quanto a mim o aspeto mais positivo.

Também nunca a humanidade esteve tão bem preparada para enfrentar uma pandemia como esta, que seguramente se saldará por muito menos vítimas que outras anteriores como a peste, a varíola, a tuberculose, ou mais recentemente a gripe espanhola e a gripe asiática.

Temos razões para ter muita confiança nos progressos que vão sendo alcançados pela investigação científica no desenvolvimento de novas terapêuticas e vacinas. Mas não descuremos os danos psicológicos.

Mantenho a esperança de viver ainda um bom par de anos na companhia dos meus filhos e dos meus netos e não peço para mim nada mais do que estou a proporcionar à minha mãe. Entre a opção de correr o risco de apanhar a doença e o de ela viver o tempo que lhe resta em total solidão, optei, assim como os meus irmãos, por nunca a abandonar. Não estou arrependido. Até agora nada aconteceu e ninguém pode garantir que nada aconteça, mas o que sei é que deixá-la sem a companhia dos filhos, seria morte certa ao fim de pouco tempo e depois de sofrer muito com a solidão. Também sei que essa foi seguramente a sua opção.

Todos estamos a viver uma situação inédita, ninguém conhece a receita certa para lidar com ela e não é fácil tomar uma decisão. Muito menos será fácil chegar a um consenso.

Provavelmente alguns concordarão comigo, outros estarão em oposição e talvez a maioria tenha dúvidas. Limitei-me a transmitir aquilo que penso sobre a minha própria situação, supondo que não será muito diferente da de outros pais e avós.

A vida já me ensinou o suficiente para saber que há coisas que não mudam facilmente, mesmo que nos estejamos a aproximar de um desastre iminente pelo que duvido que este meu desabafo resulte em qualquer mudança.

O que este vírus nos está a causar é uma grande maldade. Saibamos nós combatê-lo e aos seus efeitos, sem nos deixarmos abater.

Não tenho o tempo todo do mundo, como pensamos que temos quando somos jovens, por isso mesmo não quero ficar totalmente passivo nesta situação, sem estrebuchar. Vou lutar pela continuação da nossa vida familiar e não me chega fazê-lo on-line. Pelo contrário, às vezes ainda me deprime mais.

Anda por aí um slogan que diz ‘vai correr tudo bem’. Eu diria que assim vai correr tudo mal.

Vai correr tudo mal com a propagação da doença. Vai correr tudo mal com as consequências económicas. Vai correr tudo mal com os mais velhos e doentes. Vai correr tudo mal com a falta de prevenção de outras doenças. Vai correr tudo mal com o adiamento de cirurgias e consultas.

É tempo de enfrentar esta epidemia.

É tempo de perder o medo porque o medo também mata.

É tempo de correr alguns riscos, tentando minimizá-los, mas tendo a plena consciência de que não há risco zero.

Com os devidos e mínimos cuidados, temos de viver a vida e não nos podemos deixar abater e deixar que o vírus vença.

O total isolamento pode ter sido útil no início, e foi com certeza, mas agora temos de reagir, sob pena de se instalar o cansaço e então a abertura ser frouxa, sem ânimo, sem vontade de combater.

Nós, os mais velhos, teremos alguns cuidados, mas não podemos ficar encerrados, tolhidos pelo medo, somos também capazes de correr alguns riscos.

Médico, Pai de 7 filhos e avô de 23 netos

Caxias, 27 de abril de 2020