A idealização romântica da história dos países e dos povos ignora que esta está sempre cheia de egoísmos, violências, terrores e dominações sobre outros, em particular quando avaliados como mais fracos — pela cor da pele, pela nudez com que se vestiam, pelas zarabatanas contra canhões. É essa a história do mando, da potência, da subjugação, presente inexoravelmente em todos os impérios. Muitos crimes, sim — abomináveis como o extermínio de indígenas donos das terras conquistadas, da crueldade imensa que pauta a escravatura. E é certo que a evolução dos valores da Ética e da Liberdade dificilmente se coadunam com esta realidade — a não ser para a aritmética da extrema direita, mas estes não têm (nem nunca tiveram, nem nunca terão) qualquer Ética nem qualquer sentido de Liberdade, palavras que queremos escritas com letra grande. Admitiríamos uma estátua corporalizando o mandante assassino dos nossos pais na praça central da nossa cidade? Ainda provocatoriamente, aceitaríamos na Alemanha ou na Áustria uma escultura do algoz nazi com o argumento de que é histórico, portanto há que respeitar?

Mantemos circunspectamente Auschwitz como lugar da memória do horror – e muito bem; mas em lado algum lembramos a monstruosidade do lancinante sofrimento de milhões de escravos.

No entanto, é também verdade que, nós, e aqueles que dominámos, somos o produto de muitas circunstâncias que fazem a nossa história comum, construída de trocas e mútuas influências. A verdade do sanguinário e do hediondo é contemporânea do contributo científico e artístico. Apenas como exemplo, imagina-se os milhões de vidas salvas em África e na Ásia pelos enormes avanços no conhecimento por parte da Medicina europeia?

É por este caldeirão de razões, quiçá contraditórias, que estas questões inquietas se colocam nos antípodas do narcisismo nacionalista, este burlescamente representado no espalhafato provinciano e grotesco do presidencial “somos os melhores, nunca fizemos mal a ninguém”. Isto e a destruição de símbolos da narrativa histórica colectiva – como a estátua do padre António Vieira – não passam, afinal, de faces da mesma moeda. Mas, tal como a insuflada e populista auto estima disparatada de Marcelo & afins apenas desperta cada vez mais sorrisos de mofa e escárnio, a devastação dos símbolos do nosso passado comum só pode ser vista como uma alienada e afrontosa incompreensão de como cursou o caminho de todos nós.

Estes assuntos, que abordam o devir da nossa identidade colectiva, apenas se colocam à consciência e reflexão dos democratas e das pessoas sensíveis, por um lado capazes de se colocarem no lugar do Outro e de entenderem o transporte transtemporal da memória da dor provocada pelo colonialismo, mas também de considerarem tudo aquilo que nos fez a todos e a cada um: a nossa História, feita da tragédia mas também da partilha e do contributo generoso, de ser mais o que nos une do que aquilo que nos separa. Do massacre de Wiriamu como da glória de Eusébio, curvando-nos na libertação de todos — incluindo dos opressores — pela humanidade sem fim de Mandela. Cada facto na sua circunstância, no seu contexto próprio. Afinal, tanto no entendimento da História como na compreensão do itinerário pessoal de cada um de nós.

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