É o primeiro dia de Primavera e, quando chego ao comboio, vejo que tão cedo não sai por causa de um “acidente com peão”. Nunca hei-de compreender esta mania de dizermos em linguagem supostamente técnica aquilo que já tem palavras mais simples, mais eficazes e sem a timidez do eufemismo. Parece-me que não há acidentes com peões, há acidentes com pessoas. Num acidente com peão a pessoa em causa passa a ser vista a partir da relação que tem com transportes. Quem quer ser tratado a partir de como se dá com transportes? Julgo que pessoas são pessoas, quer vistas dos transportes, quer vistas de outro lugar qualquer.

Pelo que ouço na carruagem parada, a pessoa tinha-se metido na linha do comboio mas sobreviveu. Já não bastava achar que era melhor morrer do que viver, metendo-se na linha, ainda tem de ser chamada de peão. Aguentou provavelmente todo o Inverno em esforço para, ao chegar a Primavera, matar-se sem sucesso e acabar feita “peão”—há modos de sobreviver mais indignos do que a morte.

Passamos boa parte da vida a dar nomes técnicos absurdos ao que nos assusta, ao que nos alegra, ao que acrescenta algo à previsibilidade dos nossos dias. Há uma pessoa que se quer matar debaixo do comboio e, para que tudo prossiga o mais normal possível, chamamos-lhe de peão. Talvez assim pareça que temos mais controlo, ou que o que nos interrompe os cálculos não seja assim tão mau. Mas, como os miúdos agora dizem no inglês original, at the end of the day uma pessoa atirou-se à linha para morrer, não conseguiu e nós, para lidar com os aborrecimentos práticos que daí vieram, soubemos: deu-se um “acidente com peão”.

Deveria a CP justificar atrasos assim com um anúncio de “interrupção por tentativa de suicídio”? Seria mais detalhado, mais poético até, mas eventualmente seria também demasiada realidade para o que conseguimos suportar no uso quotidiano dos transportes públicos. Proponho, sim, que, entre a nudez desagradável de factos extremos e o malabarismo suave do linguajar técnico, outro alfabeto esteja à nossa disposição. Agarremos, por isso, um idioma que rejeita tornar suicidas em peões.

Talvez por estar a ler as memórias de Nelson Rodrigues, em “A menina sem estrela”, este episódio suscitou em mim mais reacção ainda. Afinal, o escritor brasileiro dizia que “Deus prefere os suicidas”. Tornar num “acidente com peão” a atitude de quem aguenta um Inverno em sofrimento para se matar no primeiro dia da Primavera só nos torna mais indiferentes a tudo: à pessoa que decidiu tentar tirar a sua vida, e ao Deus que decidiu dá-la.

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