A crise de 2020 não é igual à crise de 2008. As causas são diferentes e os efeitos são distintos, mas agora serão mais devastadores. Embora estejamos perante uma página ainda incerta, podemos concluir que só com muita solidariedade será possível pôr de pé o País e a própria União Europeia, que durante dois meses, estão a ser fustigados pela maior tempestade do pós-Guerra. A Covid-19 pôs-nos de rastos.

Dezasseis horas de negociações foram insuficientes para, na primeira ronda, os ministros das Finanças da zona euro conseguirem chegar a um acordo. Só na segunda parte da reunião, o Eurogrupo obteve uma solução de compromisso: 500 mil milhões de euros para proteger trabalhadores, empresas e finanças públicas.

A construção da Europa tem tido períodos muito difíceis, pelo que não seriam meras intenções a tirarem-na da hecatombe provocada por um vírus que ultrapassou fronteiras, paralisou o quotidiano e obrigou-nos a questionar tudo.

A Europa fez-se de solidariedade: nos processos de alargamento, nos programas comunitários e de fundos europeus, na partilha de soberania, na revisão dos tratados e na instituição de uma zona monetária comum.

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Chamem-lhe o que quiserem – medidas, soluções, pacote de emergência, fundos, redes de protecção, mecanismos, Plano Marshall, ajudas com ou sem “coronabonds” – mas a União Europeia tem pela frente uma hora das mais complexas que alguma vez teve.

É verdade que as negociações na União, a 27 ou a 19, são sempre muito difíceis, mas começa a cansar esta teimosia por parte de alguns Estados de não quererem ceder um pouco da sua capacidade e credibilidade financeiras para acolher e diluir o risco de alguns países vergados pela força de uma catástrofe global, que tem na Europa as sepulturas de mais 60% das vítimas mortais de um vírus. Para já, há um avanço, mesmo que a mutualização da dívida da zona euro fique para ponderação para mais tarde. Os títulos de dívida europeia serão inevitáveis e deverão ter a participação do Banco Central Europeu, bastando pensar que o Banco de Inglaterra está a fazer o mesmo, ao financiar o governo inglês para responder à crise que está a testar ao limite a capacidade do seu NHS- National Health Service.

Os Estados poderão, no imediato, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade, ter acesso a linhas de crédito para apoiar custos directos e indirectos relacionados com a cura e tratamento da Covid-19. É um sinal de solidariedade europeia que rompe com uma rigidez negocial inaceitável e permite, em parte, recuperar semanas de muita inércia europeia. Com este pacote, será possível ter esperança no “day after” da crise sanitária.

O primeiro-ministro italiano recorrera ao jornal “La Repubblica” para pedir mais ambição, mais unidade e mais coragem à União Europeia. No momento mais crítico que a Itália vive depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa falhou numa primeira fase. Faltou coração, faltou, acima de tudo, solidariedade europeia, que “não foi sentida nos primeiros dias desta crise”.

Na carta, o primeiro-ministro italiano citava três vezes a palavra solidariedade, que, para Conte, esteve ausente desde a eclosão da pandemia no norte de Itália. De facto, a “tinta que usamos para escrever esta página da história”, como dizia, esteve invisível. E se essa tinta está ausente quando se jogam milhares de vida, para defender os povos “de um mal do qual não são culpados”, protegendo “especialmente os mais frágeis”, para que serve a Europa?

A carta do primeiro-ministro italiano é uma resposta a uma mensagem da presidente da Comissão Europeia, que, no dia 1 de Abril, escolhera também o jornal de Roma para pedir desculpa aos italianos. A Europa e as suas instituições não souberam actuar, e cada Estado-membro, reconhece Ursula von der Leyen, pensou unicamente nos “próprios problemas domésticos”.

Assinado em 25 de Março de 1957, o Tratado de Roma, e para algum fim prático servem os Tratados, evidencia no seu preâmbulo o sentido da solidariedade: garantir o desenvolvimento harmonioso, reduzindo a distância e o atraso entre as diferentes regiões. A solidariedade é um princípio que aproxima os povos europeus e permite consolidar, sem receios, o processo de integração europeia. De resto, a cedência de soberania, nem sempre auscultada de forma democrática juntos dos povos, implica que a jusante os cidadãos sintam que há instituições supranacionais que intervêm quando os europeus mais precisam, de uma Europa que é capaz de comprar equipamentos e medicamentos para os profissionais de saúde, transportar e tratar dos doentes de outros Estados-membros e accionar todos os instrumentos de cooperação, como o Mecanismo Europeu de Protecção Civil.

Como serão necessários outros instrumentos para recuperar empresas, manter postos de trabalho, reindustrializar o tecido empresarial, suster incursões de desestabilização financeira dos países sobreendividados, equilibrar o sistema de preços, financiar os sistemas de saúde, conferir vitalidade ao comércio mundial, consolidar os sistemas de pensões e apoiar e mobilizar redes de solidariedade como nunca para travar a fome. A fome na Europa não é igual à de África, mas na União as desigualdades sociais e as bolsas de pobreza vão disparar. Enquanto existirem famílias que não tenham três refeições para dar de comer aos seus filhos, então a União não estará a cumprir a sua função social.

Uma Europa que persista nas clivagens entre Norte e Sul, Leste o Oeste, ricos e pobres, protestantes e católicos, pró-eurobonds e anti-eurobonds acabará por derreter o projecto ao sol. Os governos não podem travar mais esta onda de solidariedade clamada pelos povos da União Europeia, inspirada também no espírito humanista e nos valores fraternos e da tolerância que nortearam também Erasmo de Roterdão.

Esta crise é gigantesca – e ainda nem sequer dispomos de todos os dados – mas os decisores europeus não podem ficar paralisados pelo “filtro do egoísmo”, como dizia Giuseppe Conte.

Neste momento tão difícil para muitos europeus, eu, enquanto portuguesa, também digo: sou italiana, espanhola e francesa.

Só com determinação podemos dobrar este ciclo de brutalidade sanitária, económica e social, e manter a chama da paz e da solidariedade como os grandes esteios de uma Europa que mantém viva a memória que a ajudou a crescer.