À superfície da vida de cada um, uma superfície que nada, no fundo, nos obriga a transcender, o que há são crenças e descrenças. Acreditamos ou não acreditamos. O saber pode perfeitamente ser posto de lado na vida comum que é quase a nossa vida toda. Quando muito, podem lançar-se uns pozinhos com aparência de vestígios de saber para seduzir espíritos mais desconfiados, mas não é geralmente preciso mais do que isso.

Não estou, é claro, a dizer que tenha de ser assim e ainda menos, se possível, que deva ser assim. Muitíssimo pelo contrário. Se quisermos entrar na antiquíssima conversa sobre o que torna uma vida, por menos exemplar que pretenda ser, digna de ser vivida, uma vida examinada, a crença e a descrença são pontos de partida para várias outras coisas destinadas a modificá-las em maior ou menor grau. Estou apenas a dizer que é perfeitamente possível viver a maior parte do tempo dispensando-nos desses transtornos indelicados que muitas vezes nos complicam a existência e que há até gente particularmente perita nesse modo simplificado de ser.

Estes dois parágrafos ligeiramente esotéricos têm a sua razão de ser. Na semana passada vi dois filmes (um deles, de facto, revi-o) que lidam com este tipo de questões: Dúvida, de John Patrick Shanley (com Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman e Amy Adams) e Florence Foster Jenkins, de Stephen Frears (também com Meryl Streep, além de Hugh Grant e Simon Helberg). Acontece que ambos os filmes lidam de forma exemplar com a questão da crença: a crença em relação a nós mesmos (Florence) e a crença em relação aos outros (Doubt).

Não vou obviamente aqui resumir os filmes, que são óptimos. Limito-me ao que me parece o essencial do essencial. Florence é um filme impecável, em que o mais perfeito cómico é constantemente acompanhado, como deve ser, pelo trágico, sem que cada um deles, presente no outro, jamais o deforme ou o pretenda sublimar. A questão é esta: como é que alguém absolutamente destituído de talento para cantar (Florence, a personagem representada por Meryl Streep) se pode a si mesmo convencer do contrário, ao ponto de dar um recital em Carnegie Hall? O filme, é claro, oferece o contexto todo em que a crença se dá, mas o mistério da crença em si permanece intacto. O que leva alguém a acreditar naquilo que é literalmente inacreditável? Que espécie de desejo permite um tal salto para fora do domínio comum do verosímil? Que a questão não é indiferente, o próprio filme mostra-o exemplarmente, praticamente sem falhas, e exibindo, na sua excentricidade, algo que se encontra muito mais próximo do que parece da experiência comum.

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O filme de John Patrick Shanley (baseado numa peça de teatro do próprio, vencedora do Prémio Pulitzer) trata da crença a partir de um tema o mais diverso possível. A directora de uma escola católica nova-iorquina (Meryl Streep) está convencida que um padre que ali ensina (Philip Seymour Hoffman) tem relações pedófilas com um miúdo preto que é ostracizado pelos colegas. Ora, trata-se de uma crença que não se traduz em nenhuma prova. A persuasão é inteiramente subjectiva, embore aspire, é claro, a uma validade objectiva. Tudo são aparências que, como muitas vezes na vida, podem dizer uma coisa ou outra. O filme (e, antes dele, a peça de teatro de que é adaptação) insiste exactamente nessa impossibilidade última de prova. A certeza, por radical que seja, esbarra objectivamente na dúvida.

O que há de comum a estes dois casos e a estes dois filmes tão diferentes um do outro? É o eles contarem-nos as aventuras da crença quando ela, voluntária ou involuntariamente, não beneficia do contrapeso de uma experiência que nos possa ajudar a determiná-la positivamente (como verdade) ou negativamente (como falsidade). Florence e os que a rodeiam conseguem com grande esforço fazer com que a pior cantora do mundo não se submeta nunca àquilo que Freud chamava “prova de realidade”. A irmã Aloysius Beauvier persiste até praticamente ao fim do filme na certeza da pedofilia do Padre Flynn, sem nada obter que se assemelhe a uma prova.

Como disse no princípio, esta autonomia da crença por relação aos objectos que a podem marcar como “verdadeira” ou “falsa” é uma possibilidade que pode ser desenvolvida por si mesma. E nós, seres humanos, desenvolvemo-la abudantemente. Seria, de resto, provavelmente muito difícil, nos juízos que fazemos de nós próprios e dos outros, precindir dela por inteiro. São, como de costume, os casos mais radicais, mais patológicos, que nos revelam o nosso próprio fundo mental.

Melhor ou pior, na vida corrente vamos corrigindo os exageros próprios à autonomia da crença. O problema a sério começa quando a própria sociedade em que vivemos deixa de nos oferecer instrumentos para essa correcção, isto é, dispensa provas ou encara mesmo estas como um artifício ilegítimo. Porque aí deixa de haver qualquer intervalo entre a crença e a realidade. Esta última passa a ser encarada apenas como a concretização acidental e momentânea da primeira.

E não há nada como o discurso político (em função da sua própria natureza e não de uma sua qualquer perversão, é preciso dizer) para por vezes revelar o perigo da abolição do intervalo entre a crença e a realidade. O discurso político retoma muitas vezes as condições da crença comum que mencionei no princípio.  Porque se trata de um discurso inteiramente colocado sob as ordens da vontade e do desejo. A crença quer-se realidade a todo o custo. As mediações requeridas para a passagem de uma a outra não passam, a seus olhos, de requisitos ideologicamente motivados e, como tal, descartáveis. E quanto menos se reconhecem os obstáculos como obstáculos objectivos, mais o puro acreditar descobre espaço para voar e pode proclamar bem alto a elevada dignidade do seu vôo. O problema nestas coisas é que o que está em jogo não é o destino individual de Ícaro. É o nosso, colectivo. Por isso, amigos, desconfiemos daquilo que nos é mais doce acreditar. Até prova em contrário é mais seguro e permite-nos guardar algumas convicções que nos ajudem a viver a tal vida examinada.