Escutem os vossos inimigos. Só assim os poderão vencer.

Escutem o ISIS, ou Estado islâmico ou Daesh ou Califado, ou como lhe quiserem chamar. Só assim o poderão vencer. A Europa não escuta. Não liga. Esquecendo milhares de anos de experiência, convivência e contactos, emula o seu aliado principal – os Estados Unidos da América – e até um vizinho poderoso e ameaçador – a Rússia – e age sozinha. Ou melhor, não age, encerra-se nas suas paredes de cetim e vidro, esperando que a tempestade lá fora amaine, passe sozinha, se desvaneça para sempre como o pesadelo que é. 

Conhecer o inimigo:

A administração da selvajaria é o próximo nível por que a Ummah (a comunidade ou nação supranacional islâmica) terá de passar e que é considerada o seu estado mais crítico. Se formos bem-sucedidos na sua gestão, esse nível (com permissão de Deus) será uma ponte para o Estado islâmico tão esperado desde a queda do Califado. Se falharmos e procurarmos refúgio em Deus isso não significa o fim da questão; ao invés, esse falhanço levará ao aumento da selvajaria!!

Este texto é um excerto da introdução do livro de Abu Bakr Naji, aliás Muhammad Khalil al-Hakaymah, escrito em 2004 e considerado uma espécie de programa da Al-Qaida para o restabelecimento da Califado – das margens do Eufrates à costa do Atlântico. Foi recentemente evocado num artigo do Guardian pelo antropólogo Scott Atran, que já em 2014 referira a necessidade das democracias fornecerem uma alternativa à sede de glória que motiva os jovens que se juntam à jihad. Escreveu então Atran: “o que inspira os terroristas mais letais do Mundo hoje em dia não é tanto o Corão ou os ensinamentos religiosos, mas uma causa excitante e um apelo à acção que promete glória e estima aos olhos dos amigos”. 

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Os ocidentais, bem ou mal pensantes, que apelam a retaliações imediatas, brutais, cegas, contra tudo o que pensam ser a razão da vulnerabilidade ocidental – e europeia, em particular – jogam o jogo do inimigo. Fechar fronteiras? Terminar Schengen? Despejar toneladas de bombas na Síria? Expulsar os refugiados? Prender suspeitos sem “habeas corpus”? Declarar os muçulmanos – os 1200 milhões do Mundo, por amor de Deus – “personae non gratae”? Colocar a polícia em permanência nas ruas, aumentar as forças de segurança “ad infinitum”, duplicar ou triplicar os orçamentos militares e de segurança? Promover a paranoia securitária?

Conhecer o inimigo:

Este aumento da selvajaria que pode resultar do falhanço não é a pior coisa que pode acontecer (…). Antes, o mais abominável dos seus níveis (ainda) é menos mau em muitos graus do que a estabilidade sob a ordem dos infiéis”.

O livro de Abu Naji, intitulado “Administração da Selvajaria: o estádio mais crítico por que passará a nação islâmica” é uma espécie de programa de reinstauração do Califado, seguido pelos comandantes do Daesh. Escrito ainda o movimento não existia, a sua estratégia parece ter sido fielmente adoptada por ele. Expulso da Al-Qaeda em inícios de 2014 pelo seu carácter extremista, impressiona como o ISIS se afirmou no terreno em menos de dois anos, projectando um terror global: para os fanáticos de Deus, não há compromisso com a missão de converter o Mundo ao Islão radical.

Os bárbaros ataques a Paris puseram a descoberto a fraqueza das democracias: um pouco por todo o lado – até neste pequeno país aparentemente fora do circuito do terror (que ilusão) – se aponta o dedo aos refugiados; os muçulmanos são olhados com suspeição; aumentam os apelos à construção de muros reais ou virtuais; fazem-se planos para a criação da decantada fortaleza Europa; a livre circulação europeia é posta em causa. Ao mesmo tempo, pelo menos por enquanto, o Ocidente não é capaz de se entender, entre si, e com a Rússia, para dar ao Daesh a única resposta possível: um punho de ferro que agarre e não largue mais, de forma coordenada e no terreno, que erradique a raíz do mal para que o mal não volte a crescer. Mas uma acção militar, poderosa, concertada, global, não pode ser um fim em si mesma: é essencial reconstruir países, fazer crescer na origem da jihad uma ordem sem selvajaria, sem caos, desde já com estratégia, objecto, método, razão. Porque sem ela, ainda que derrotado o Califado vence, aguardando paciente, as suas sementes espalhadas na desolação da selvajaria. 

Conhecer o inimigo e o seu programa: criar e gerir o ressentimento religioso e nacionalista para a propaganda a longo prazo. Provocar respostas militares dos superpoderes como base de recrutamento. Mártires, publicidade, atrocidades, publicidade (o oxigénio do terrorismo, afirma Scott Atran). Uma estratégia de atrito, escreveu Naji: começar pelos Estados muçulmanos, gerar o caos na Jordânia (origem do fundador do ISIS), Iémen, África do Norte, Nigéria, Paquistão. E, sim, Arábia Saudita. Com o caos instalado, os jihadistas (Al-Qaeda, o Daesh) ocupam o terreno, fornecem segurança, serviços sociais, a sharia. Ordem e religião. À estratégia da selvajaria os Ocidentais deram uma mão: conquistando o Iraque e abandonando-o em 2011, deixando em chamas parte da velha Mesopotâmia, logo ocupada pelos jihadistas. Seguiu-se a Líbia e a Síria. Havia outra forma de fazer? Não sei, mas também não sou eu que devo saber. O caos prossegue, entretanto, no Iémen, atacado pela Arábia Saudita, e um pouco por toda a África a sul e norte do Sahara. No Corno de África. No Afeganistão. 

Conhecer o inimigo: em Janeiro deste ano, a revista on-line do ISIS, Dabiq, explicava que o objectivo principal consiste em dividir o Mundo, levando os muçulmanos que estão na “zona cinzenta” – entre o bem e o mal, o Califado e os infiéis – a saírem dela. Milhões de árabes, persas, turcos, indonésios, paquistaneses, africanos, que professam a religião e que, na visão diabólica dos jihadistas, são soldados potenciais ao serviço da causa (trata-se, escreveu Atran, de um movimento contra cultural revolucionário de proporções globais históricas – a maior força de voluntários combatentes desde a 2ª Grande Guerra). 

Se o Ocidente, a Europa, diabolizar os muçulmanos e os olhar como inimigos – fará deles inimigos. Das dezenas de milhões que vivem no nosso continente aos milhares de milhões que nos rodeiam: inimigos. Se dos ataques de Paris resultar a divisão da Europa, o fechamento das fronteiras, a expulsão indiscriminada de refugiados, a estratégia de Naji estará a resultar. Se continuarmos pusilânimes, a bombardear sem mais alvos de 10 mil metros de altura, criando um caos sem reconstrução, instalar-se-á a selvajaria, o terreno fértil onde medra o fanatismo.

A Europa tem recursos, tem inteligência, tem cultura, tem capacidade militar. E tem de saber usá-los, unida, porque a união faz a força. Escutem os vossos inimigos e não contribuam para lhes dar a vitória.