O meu artigo da semana passada (ADSE para todos) suscitou muitas e variadas reacções. As mais notáveis – ainda que perfeitamente compreensíveis do ponto de vista humano (porventura demasiado humano) – são as que recorrem a uma variedade de argumentos imaginativos na tentativa de defender o indefensável: um sistema de privilégio restrito a alguns funcionários públicos e vedado aos restantes cidadãos por parte do mesmo Estado que empurra a generalidade da população para um SNS com pouca ou nenhuma liberdade de escolha.

Num plano mais sério, vários outros leitores levantaram questões relacionadas com os critérios alegadamente poucos claros que a ADSE emprega no definição do estatuto de prestadores e na complexa teia de relações financeiras com os mesmos. Outros ainda alertaram para que, não obstante o significativo aumento do auto-financiamento da ADSE levado a cabo pelo governo liderado por Pedro Passos Coelho, o sistema dificilmente pode ser considerado auto-sustentado. De facto, um cash-flow positivo não implica sustentabilidade estrutural, cuja análise rigorosa requer considerar efeitos de médio e longo prazo, assim como todos os recursos – passados, presentes e futuros – canalizados directa e indirectamente pelo Estado para o financiamento da ADSE.

Não poderei, naturalmente, responder a estas observações num artigo desta natureza, mas faço votos de que a recém-nomeada comissão para a reforma da ADSE tenha oportunidade de o fazer. Independentemente de maiores ou menores proximidades no plano ideológico, o facto de a referida comissão contar com elementos como Margarida Corrêa d’Aguiar, Fernando Ribeiro Mendes e Pedro Pita Barros é um forte motivo de esperança e um sinal positivo dado pelo ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes.

Gostaria, no entanto, neste âmbito de recentrar a discussão no plano da equidade das políticas públicas. Para o efeito, duas das críticas de esquerda que me foram dirigidas serão úteis para reafirmar o meu argumento principal. A primeira, de João Rodrigues, cujos simpáticos elogios (não obstante o tom vagamente conspirativo) agradeço, defende a extinção da ADSE. Uma conclusão a que chega através de uma aplicação internamente consistente dos princípios igualitários do modelo vigente de SNS: todos devem ser incluídos e não devem ser permitidas excepções pelo que, nesta perspectiva, a ADSE é logicamente inaceitável e deve ser eliminada o mais rapidamente possível.

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A segunda, de Luís Aguiar-Conraria, é menos simpática, acusando-me indirectamente de demagogia e, o que é porventura ainda pior, de ter secundado o CDS. Considero natural a discordância, mas apreciaria que me fizessem a justiça de não reduzir os meus artigos a exercícios de secundar partidos, quaisquer que eles sejam. O argumento principal de Aguiar-Conraria é que a ADSE é um excelente subsistema de saúde, mas que o alargamento ao resto da população deve ser feito de forma cuidadosa para não o arruinar. Aguiar-Conraria sugere que isso implica tornar o sistema obrigatório.

Sem querer transformar um artigo que porventura já vai demasiado técnico e enfadonho numa das minhas aulas sobre políticas sociais e modelos de Estado Social, diria que uma das principais razões para discutirmos seriamente os problemas de equidade levantados pela ADSE prende-se precisamente com a desejabilidade de considerarmos modelos alternativos ao actual SNS, os quais podem passar (ou não) por seguros obrigatórios. Este não é o contexto adequado para propor um modelo alternativo, mas essa é uma discussão que urge iniciar no contexto português, até porque há muito para debater e reflectir além dos problemas associados à selecção adversa.

Pensar seriamente sobre a forma como a ADSE tal como actualmente existe constitui uma violação grosseira do princípio da igualdade é um bom ponto de partida para essa reflexão. Talvez seja possível e viável alargar a cobertura da ADSE em condições de igualdade ao resto da população, ainda que tal implique ajustamentos estruturais no sistema. Ou talvez não, sendo que nesse caso a sua extinção parece ser a única opção defensável à luz do princípio da igualdade. O que não parece moralmente defensável é a manutenção da actual situação: o mesmo Estado que impõe um SNS estatal e universal oferecer simultaneamente aos seus funcionários dilectos um subsistema de saúde fechado que garante uma considerável liberdade de escolha nos cuidados de saúde que é negada ao resto dos cidadãos.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa