“Não há a mínima dúvida de que iremos cumprir a fórmula que existe desde a reforma de 2007. As leis existem para serem cumpridas. (…) [Isso] significa que, para o ano, haverá um aumento histórico do valor das pensões.”

António Costa, junho de 2022, CNN Portugal

1 É caso para dizer que o verdadeiro artista não é Serafim Saudade, mas sim António Costa. Se um tinha a sua voz melosa que enganava as audiências, o outro tem um sorriso malandro e habilidoso que ajuda a iludir os portugueses desde 2015.

Esta semana tivemos dose dupla de mais uma sessão de marketing político que a maioria dos comentadores costuma confundir com “fazer política”. Primeiro foi a sessão propriamente dita “Famílias Primeiro” em que as conclusões gerais foram as seguintes para um pacote de 1,4 mil milhões de euros:

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  • o Governo distribuirá 125 euros a todos os que tenham um rendimento inferior bruto a 2.700 euros mensais e todos os jovens até aos 24 anos (independentemente dos rendimentos dos pais) receberão 50 euros. Esta é a versão socialista da teoria do “helicopter money” do perigoso ultra-liberal Milton Friedman.
  • O IVA da eletricidade será reduzido de 13% para 6% para os consumos mais baixos, o que significa, na prática, que haverá uma redução muito pouco significativa. Já o gás não terá mais do que a passagem para o mercado regulado
  • Limitação do aumento máximo das rendas e congelamento do aumento do preço dos transportes

Resumindo e concluindo, o Governo arrisca-se a ter um acréscimo de cerca de 7 mil milhões de euros em receita fiscal até ao final do ano e vai investir cerca de 1,4 mil milhões de euros num plano de anti-inflacionário.

Um plano poucochinho que vale 47 vezes menos do que o plano alemão apresentado recentemente (ou 68 vezes menos do que os alemães já investiram desde fevereiro) e 18 vezes menos dos planos que a Espanha já anunciou desde março.

2 O pior, contudo, é o ‘apoio’ de 50% para todos os pensionistas — que vale os restantes mil milhões de euros que dá a soma total de 2,4 mil milhões de euros publicitada pelo Governo. É designado pelo Governo como um “suplemento” extraordinário mas, na realidade, é a antecipação de metade do aumento das pensões previstos para 2023. Isto de acordo com a fórmula de cálculo que ainda está em vigor e que inclui obviamente o valor da inflação.

Chame-se truque, habilidade, marketing ou pura e simplesmente uma chico-espertice, o que interessa é que o Governo vai fazer uma alteração da fórmula de cálculo das pensões, de forma a que os restantes 50% do aumento previsto não se concretizem. Portanto, vai cortar na pensão que estava prevista para 2023 e para os anos seguintes.

Desde logo, esta medida representa uma total e absoluta violação do pregão da “palavra dada, palavra honrada” que António Costa tanto gosta. Em junho de 2022, há menos de três meses, um primeiro-ministro cheio de si jurou no programa de Pacheco Pereira e Lobo Xavier na CNN Portugal que “não há a mínima dúvida de que iremos cumprir a fórmula que existe desde a reforma de 2007. As leis existem para serem cumpridas”. Mais: o que “significa que para o ano, haverá um aumento histórico do valor das pensões”.

Soubemos há uma semana que não haverá um “aumento histórico”. Haverá sim corte brutal nas pensões a partir de 2023 porque os pensionistas vão receber significativamente menos do que receberiam com a atual lei.

3 É óbvio que o contexto provocado pela guerra, aumento abrupto da inflação e das taxas de juros, faz com que, na ótica do Governo, seja necessária esta medida. O que não impede a censura a António Costa por várias razões.

Em primeiro lugar, porque a sua promessa de que haveria um “aumento histórico” foi feita, repete-se, há três meses. Já havia Guerra, já havia inflação elevada e o BCE já tinha subido a taxa diretora uma vez e prometido subir mais. O atual contexto já estava claro para todos. Menos para Costa que foi claramente politicamente fanfarão e imprudente ao fazer aquela promessa.

A segunda razão é ainda mais importante: há uma mudança de 180 graus na narrativa política do PS sobre a sustentabilidade da Segurança Social.

Ou seja, o PS descobriu (finalmente!) que há um problema com a Segurança Social, invertendo toda uma narrativa que a dupla Ferro Rodrigues e Vieira da Silva criou no final dos anos 90. Foi nessa época que o PS de Guterres meteu na gaveta as reformas que Ribeiro Mendes (ex-secretário de Estado da Segurança Social) defendia para impedir precisamente os problemas estruturais que temos hoje e, mais relevante, promover uma solidariedade inter-geracional em que haveria uma justa distribuição do esforço necessários, não recaindo toda a conta pela minha geração e pelos mais novos.

4 Há muitos exemplos da tática da avestruz que o PS, inspirado pela dupla Ferro Rodrigues/Vieira da Silva, seguiu nos últimos 20/30 anos. Vou dar apenas um dos mais recentes, precisamente protagonizados por Vieira da Silva em abril de 2019 enquanto ministro do Trabalho e da Segurança Social de António Costa.

Um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos garantia então, como muitos outros estudos tinham garantido antes (e muitos outros garantiram depois), que, sem reformas, a segurança social portuguesa era insustentável. Pior: sem reformas, poderia colocar em risco o próprio crescimento económico.

Eis apenas um resumo dos dados que sustentavam a tese do estudo cientifico e que já abordei aqui:

  • Os défices do sistema surgiriam em 2027 e teriam de ser pagos pelo Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. Naquela época, a dotação era de 18 mil milhões de euros e chegaria para pagar os défices até 2038. Partindo do pressuposto de que os mesmos não aumentariam, claro. Entretanto, o Governo Costa diz que conseguiu ’empurrar’ para 2030 o período em que o sistema chegará ao tal défice;
  • Como os descontos da população ativa (com tendência para descer porque taxa de natalidade não sobe e o balanço entre as pessoas que saem e as que entram no país não compensa a diferença) não chegariam para pagar as pensões a pagamento (cada vez mais porque a longevidade média dos cidadãos vai aumentando), o Estado teria que transferir cada vez mais dinheiro dos impostos para a Segurança Social.
  • Só em 2016, as pensões da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações somavam 22,2 mil milhões de euros (o valor é hoje superior) — um peso que na altura correspondia a 14% do PIB. Em 2045, prevê-se que o número de pensionistas chegue aos 3,3 milhões e em 2070 deveremos ter menos 37% de população ativa mas os pensionistas corresponderão a 36% da população.

Resumindo e concluindo: sem reformas, a Segurança Social será um peso insuportável para o país.

Sabe o caro leitor como é que o ministro Vieira da Silva reagiu ao estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, uma das instituições mais credíveis do país? Assim: são “ideias ingénuas” que querem “abrir o mercado aos privados”. A velha tese conspirativa da extrema-esquerda (o lugar natural de Vieira da Silva e de Ferro Rodrigues) foi a narrativa escolhida por um ministro do Partido Socialista.

Hoje o mesmo Vieira da Silva elogia o Governo que tem a sua filha como n.º 2 e diz que há uma conjuntura “muito difícil, sem paralelo”. Algo único, claro. Um pouco com a tese do “mundo mudou” de José Sócrates antes começar a apertar o cinto em 2009/2010.

As explicações de Vieira da Silva não fazem sentido. Não há nenhum facto extraordinário ou recente. A inversão da pirâmide etária e o inverno demográfico (com uma taxa de natalidade que é metade daquela que necessária para existir a substituição de gerações) começou nos anos 80 e desenvolveu-se de forma sólida nos últimos 30 anos. O problema sério existe há muitos anos. O que o PS sempre se recusou a fazer, foi a enfrentar o problema de frente.

Até mesmo a reforma de 2007 levada a cabo por Vieira da Silva, e que levou à atual fórmula e a um fator de sustentabilidade que aumenta de forma suave a idade da reforma, sempre foi uma espécie de remendo — por muito que os socialistas a vendessem como uma espécie de solução final.

5 A verdade é que as duras críticas (vindas até de dentro do PS) à ideia de António Costa de alterar a fórmula de cálculo das pensões, quebrando com as expetativas dos pensionistas, é uma tremenda ironia histórica.

Quando o Governo Passos Coelho teve de cortar salários e pensões devido ao programa de assistência financeira, os socialistas (que através de José Sócrates estão na origem da chamada da troika) fizeram os seus habituais números de marketing e acusaram o Executivo de que queria cortar mais 600 milhões de euros nas pensões.

Tudo para explorar politicamente o tema e captar o eleitorado mais velho. A estratégia resultou e os pensionistas são hoje uma das bases sociais de apoio de António Costa, que até chegou a dizer, que não aceitava “ser colocado na situação de escolher entre o futuro dos meus filhos e o presente da minha mãe”.

Refira-se, por último, que o Governo de António Costa só vai tentar fazer isto porque a isso é obrigado: se a fórmula de Vieira da Silva não fosse alterada, poderá haver um acréscimo de 2,15 mil milhões de euros anuais de despesa para a Segurança Social. Um valor astronómico que comeria a almofada de capital que a Segurança Social ainda tem.

A ironia de tudo isto é que, de facto, o PSD de Luís Montenegro tem aqui uma oportunidade de ouro de explorar o mesmo filão que António Costa tanto quis explorar em 2014/2015, conseguindo virar com êxito os pensionistas contra Passos Coelho ao fazer aquilo em que é especialista: colocar os seus interesses partidários à frente dos interesses do País.

Basta para tal que o PSD repita até à exaustão que o PS vai cortar nos aumentos das pensões e vai colocar em causa direitos adquiridos dos cidadãos mais desprotegidos.

Veremos se Costa, como jurou ontem, aguenta a “porrada” que vai continuar a apanhar ou se vai, uma vez mais, faltar à “palavra dada, palavra honrada”.

PS – Marta Temido teve uma saída honrosa do Governo e fez algo que só lhe fica bem: assumiu a responsabilidade política pela morte da grávida no Hospital de Santa Maria por falta de vagas de especialidade. Quando o país vê o primeiro-ministro a sacudir a água do capote de forma permanente, é bom saber que há ex-ministros que têm a seriedade de falar a verdade e não estarem com subterfúgios

Texto alterado às 12h28m