A África Austral está a atravessar um momento particularmente complexo e difícil, com problemas políticos e económicos e de segurança e instabilidade nos mais importantes Estados da região – desde a República Democrática do Congo (que não sendo geograficamente África Austral, está colada à região e, para o bem e para o mal, geralmente para o mal, a influencia), até à República da África do Sul, o Estado economicamente mais desenvolvido do sub-continente.

As causas dos problemas são diferentes: no Quénia, é o terrorismo jiadista, representado pelo Al-Shabab que, com intermitência, causa medo e perturbação no país; em Moçambique, é uma conjugação do banditismo político em Cabo Delgado com um escândalo financeiro que atinge parte importante da classe política; no Zimbabué, são os protestos populares continuados. Angola é hoje uma excepção em termos de estabilidade e segurança.

Mas é na República da África do Sul, em vésperas de eleições gerais, que se vive umas das situações mais graves. Destas eleições, para o Parlamento e para as assembleias provinciais, agendadas para 8 de Maio, sairá também, por voto indirecto, o próximo presidente da África do Sul.

Balanço de forças

No Parlamento, o balanço de forças continua a dar uma ampla maioria ao partido histórico do movimento anti-Apartheid – o ANC (African National Congress) – que, com cerca de 62% de votos nas eleições de 2014 e 249 lugares em 400, mantém uma significativa maioria. O seu líder é o actual Presidente da República, Cyril Ramaphosa, que há um ano substituiu na presidência Jacob Zuma, na sequência dos escândalos de peculato e corrupção que forçaram Zuma a resignar.

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O segundo partido em votação é a Democratic Aliance (DA), liderada por Mmusi Maimane. Maimane tem 39 anos e é licenciado em Psicologia, Teologia e Administração Pública. A DA tem actualmente 89 deputados (pouco mais de 22% do voto eleitoral).

À esquerda do ANC, e proveniente de uma crise no partido governante, está o EFF (Economic Freedom Fighters) de Julius Malema. Malema é o antigo presidente da Liga da Juventude do ANC que abriu uma forte polémica no Partido, acabando por ser expulso depois de se ter celebrizado por um discurso de ódio racial. O EFF tem 25 deputados, (cerca de 6,5% do voto popular).

Finalmente, com representação parlamentar nacional, há o Inkatha Freedom Party do chefe Mangosuthu Buthelezi, um partido histórico e identitário dos Zulus do Natal que perdeu grande parte da sua popularidade e representatividade. Aliás, para a ascensão de Jacob Zuma à liderança do ANC foi fundamental o seu papel como Zulu na redução da influência do Inkatha no Natal e na captação dos zulus para o ANC.

Os riscos

Num artigo recente no jornal Business Day, o líder da Democratic Aliance, Mmusi Maimane, aponta o desemprego galopante, a corrupção endémica e um Estado em situação de pré-falência como os três grandes riscos que a África do Sul enfrenta. Há, no entanto, outros “riscos” que Maimane não refere, como a altíssima taxa de criminalidade violenta e o conflito sobre a expropriação das terras agrícolas.

Segundo o  mesmo artigo, o desemprego é o mais alto do mundo, atingindo 37% da força de trabalho e 52% dos jovens. Ou seja, quase 10 milhões de adultos estão desempregados e 40% das famílias sul-africanas não têm qualquer dos seus membros a trabalhar.

O segundo malefício é a corrupção. Muito recentemente, o grupo dos cinco países que representam mais de metade do investimento directo na África do Sul – Alemanha, Holanda, Reino Unido, Suíça e Estados Unidos – se pronunciaram junto de Pretória sobre o mal-estar entre os investidores criados pela corrupção.

Finalmente, a má gestão das empresas públicas gera uma situação próxima da ruptura. O alto custo da energia eléctrica da ESKOM, por exemplo, pode  forçar muitas companhias a reduzir a actividade e a despedir pessoas, como o grupo Anglo-American, que poderá ter de enfrentar o despedimento de 150 000 trabalhadores. E a ESKOM está numa situação financeira gravíssima, para alguns, à beira da falência.

Outro problema crucial que o líder da DA não menciona é a criminalidade violenta. Entre Abril de 2017 e Maio de 2018 foram assassinadas 20 336 pessoas na África do Sul, uma subida de 7% em relação ao período anterior e uma média de 57 homicídios por dia. Pior que o Brasil. A RAS foi, em 2018, proporcionalmente à população, o 5º país em número de homicídios, sendo estatisticamente comparável, em termos de mortes, a países em guerra, como a Somália, o Afeganistão e o Iraque.

Outro sério problema da República da África do Sul tem que ver com a aplicação do princípio “land expropriation without compensation.” Este princípio, a aplicar à reforma agrária em curso, foi aprovado no 54º Congresso do ANC em Dezembro de 2017, como meio para realizar uma radical transformação social e económica do país. Em Fevereiro de 2018, o EFF introduziu uma moção parlamentar pedindo a aceleração e radicalização do processo, moção que foi rejeitada.

Embora se compreenda a necessidade ou o desejo de alguma “reparação das injustiças do passado”, a verdade é que uma medida destas semeia o medo entre os produtores agrícolas – na sua maioria Afrikaners do Norte Transval –, criando um perigoso precedente e lançando sérias suspeitas sobre a constância do Estado de Direito e das regras de boa governança.

Perspectivas eleitorais

Mas apesar da gravíssima situação económica, dos escândalos ligados à corrupção e das dissidências pela direita e pela esquerda, o ANC ainda é o favorito nas eleições de Maio. No entanto, nos últimos doze anos, tem vindo a perder eleitorado: de 68% em 2004 para 55% nas eleições municipais de 2016. Em 2016, a recusa do EFF de se aliar ao ANC levou a que a DA triunfasse em grandes cidades como Joanesburgo, Pretória ou Nelson Mandela Bay (ex- Port Elisabeth). Governando Cape Town há uma década, o DA governa a maioria das grandes cidades; enquanto o poder municipal do ANC está limitado a Durban e a Joanesburgo Leste.

No discurso sobre o Estado da Nação de Cyril Ramaphosa, mais uma vez se verificou a contradição entre a moderação e o conservadorismo económico do Presidente e o radicalismo do seu próprio partido, alimentado por uma retórica e uma dogmática ideológica que recordam o marxismo-leninismo do século passado.

Esta deriva radical de esquerda não só existe no seio do ANC, mas também entre os seus aliados, como a federação sindical COSATU ou o Partido Comunista da África do Sul (P.C.A.S.). E para ajudar, lá estão os militantes do EFF. Os comunistas, por exemplo, insistem na nacionalização do Banco Central. Parceiro importante da geringonça eleitoral do ANC, o Partido Comunista da África do Sul não parece disposto a apagar-se, desistindo das suas reivindicações ideológicas.

De qualquer modo, as comissões de inquérito aos abusos económicos no governo de Zuma têm vindo a denunciar os riscos de a “democracia” da África do Sul se transformar numa “cleptocracia”. Ao mesmo tempo, subsiste o risco do entendimento sempre ambíguo e contraditório do próprio conceito de democracia: se como governo da maioria, de uma maioria que leva tudo, e que pode chegar à democracia totalitária à Rousseau, à semelhança da governação revolucionária de 1793, ou se da democracia como protecção dos direitos individuais e das minorias.

Ainda há uma importante comunidade portuguesa na África do Sul, com presença significativa na vida económica e até política no país. E há também uma política do Estado português em relação à região da África Austral – onde se situam Angola e Moçambique.

Os interesses de Portugal e a linha estratégica da política do Estado português devem atender à boa relação país a país e à defesa dos interesses dos nossos compatriotas. Mas não podem, de modo algum, implicar da parte dos representantes e entidades diplomáticas do Estado comentários directos ou indirectos à política partidária e doméstica da África do Sul; comentários que possam interpretar-se como de apoio a determinado partido em campanha eleitoral, esteja ele na oposição ou no poder.