As últimas semanas têm sido vividas de forma febril pelo meio cinematográfico português. Especialmente o setor que se debruça sobre o chamado cinema de autor e pelos diversos críticos que vêm noticiando com grande pompa que o cinema português está à conquista de Berlim. O motivo: oito películas realizadas por portugueses no célebre festival de cinema Berlinale. A situação é de tal forma que vem merecendo honras de Estado. António Costa, que não é particularmente conhecido por frequentar as mais emblemáticas salas de cinema nem por ir aos mais destacados acontecimentos cinematográficos do país, marcou presença em Berlim para tentar convencer a Europa de que, embora pequenino, Portugal faz a diferença por onde quer que passe. É isto: oito películas, num festival de cerca de dez dias, onde são projetados cerca de trezentos e oitenta filmes.

De facto, é histórica uma tamanha presença de filmes portugueses num festival de cinema desta envergadura. Tal é inegável e é uma manifestação clara de vários aspetos muitos positivos para o cinema português, tanto ao nível dos aspetos que não controla (a preferência e a orientação dos mercados internacionais do cinema), como daqueles sobre os quais pode exercer alguma influência (querer e saber vender-se). Contudo, a forma como as notícias são veiculadas e recebidas em Portugal carece de contexto e, acima de tudo, tais notícias produzem uma imagem distorcida da realidade da situação. Por esse motivo, urge desconstruir mitos e colocar alguns aspetos em perspetiva.

Noticias deste género não têm sido incomuns ao longo dos anos. De cada vez que um ou outro filme de um português aparece num festival estrangeiro, certo setor da imprensa faz questão de o deixar saber de forma efusiva. Em terras do festival, o acontecimento é uma não-notícia, mas por cá fica-se com a ideia de que é desta que o cinema português descolou e está na berlinda — um wishful thinking acalentado e permanentemente antecipado pelo meio cinematográfico há mais de cinquenta anos. Lembro-me que há uns anos “Cavalo Dinheiro”, de Pedro Costa, esteve no London Film Festival. Recordo-me de ter lido artigos sobre isso e de várias pessoas me falarem do assunto como se fosse algo realmente importante. Estando eu em Londres, peguei no calhamaço do programa e, entre centenas de filmes, lá estava o de um português. Postas assim as coisas: not such a big deal.

Em relação ao festival de Berlim, já todos sabemos o número de filmes portugueses (oito), mas por detrás deste número há um outro em relação ao qual as notícias não se referem e que é o número total de filmes do festival. Ademais, há outros números que fragilizam o argumento de que este é um ano em que o cinema português é particularmente privilegiado. Certos polos culturais continuam a ser preponderantes e mesmo nacionalidades insuspeitas marcam presença igual ou superior à portuguesa. Por exemplo, na secção Forum, Portugal apresenta dois filmes (sendo um deles na prática um filme suíço), quando a China e o Canadá apresentam, cada um, quatro, o México e a Alemanha três e a França tem participação em outros quatro. Outro exemplo, a secção Panorama, uma das mais importantes, não conta com a presença de filmes portugueses. Já a competição, conta com três filmes franceses e dois americanos.

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Se um olhar atento ao programa confirma uma presença inaudita do cinema português neste certame, também revela a prevalência do cinema alemão, francês e americano. O programa da Berlinale conta várias histórias de sucesso e insucesso (como é o caso do cinema espanhol, atipicamente ausente) e a portuguesa é apenas uma delas. O problema é que, não desfazendo, há uma “macrocefalização” do sucesso do cinema português por cá, e isso em si é sintomático da forma como as coisas são vividas pelo meio e da própria irrelevância da cultura portuguesa no contexto europeu, realidade que tem de ser permanentemente contrariada internamente de alguma forma.

Por seu turno, o centro europeu e países da América latina, da América do norte e do sudeste asiático levam comitivas muito mais substanciais do que a portuguesa. Se por um lado esta circunstância pode dever-se ao volume da produção, parece-me, por outro lado, exagerado avançar com a ideia de que Portugal só não conta com mais filmes no festival porque não tem mais para apresentar. Note-se que muitos (a maioria) dos filmes de autor produzidos no país não estão lá representados e que, dos que estão, alguns foram realizados em regime de coprodução, com participação portuguesa minoritária ou igualitária.

É evidente que esta presença portuguesa não é uma mera consequência de um fenómeno de dilatação dos festivais ou de um jogo mais ou menos aleatório de mercados. Há uma escalada para aqui se chegar e muito se deve à mudança de paradigma em três aspetos: o financiamento e as coproduções (há hoje muito mais oportunidades de financiamento); a redução de custos que as novas tecnologias permitem (em teoria, hoje pode ser muito mais barato fazer um filme “artesanal” do que antigamente); por fim, a dinâmica internacional que a mercantilização do cinema português alcançou, seja pela fragmentação dos intervenientes por via da emigração, seja por méritos negociais. Há quem insista em questões meramente estéticas, mas a história diz-nos que a exposição de certos cineastas está, também, muitas vezes ligada a questões extra-cinematográficas.

Não sei se já tive oportunidade de mencionar, mas são quase duas mãos cheias de filmes portugueses em Berlim, num festival de quase dez dias, onde serão projetados perto de trezentos e oitenta filmes. Se estiverem por Berlim, desfrutem dessa luzente agulha por entre o palheiro cinzento.

André Rui Graça é investigador e professor assistente na University College London, onde está a terminar uma tese de doutoramento sobre o insucesso comercial do cinema português