Recebi quinta-feira, 29 de Junho de 2017, enviado pela Comissão da Agricultura e Mar da Assembleia da Republica um conjunto de oito projectos de diploma pedindo que, por escrito, me pronuncie sobre eles até dia 5.

Muito se tem falado na sequência da catástrofe de Pedrogão, ouvindo-se abundantemente as opiniões dos que não têm, ou têm pouco, conhecimento de causa em detrimento de alguns que são profissionais competentes na área da gestão florestal e da prevenção dos incêndios em meio rural.

Parece, de momento, haver uma opinião generalizada, de bom senso comum, sobre a necessidade de, urgentemente, se tomarem medidas de emergência. De facto, ainda oficial ou legalmente, não começou a época de incêndios (!) e já tivemos aquele que, desde que há registos, originou maior número mortos em Portugal e, segundo parece, no Mundo. Os grandes incêndios, segundo os dados estatísticos que existem, ocorrem no nosso país num período de pouco mais do que dez dias, em geral nos fins de Julho, ou início de Agosto, isto é, segundo as probabilidades, ainda teremos até ao final do Verão um grande número de incêndios, dos quais, também dizem as estatísticas, mais de 90% são combatidos eficazmente, mas da pequena percentagem dos que escapam ao controle é que resultam as enormes extensões de áreas ardidas. E aí podem conseguir proteger-se as pessoas mas não se salva a riqueza florestal.

É pois necessário, tomar medidas urgentes para acudir às situações de maior emergência e garantir, no mínimo, a confiança e segurança das populações existentes nas áreas mais críticas de elevado risco.

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Este é um primeiro nível de actuação. Trata-se de pôr em marcha imediatamente soluções de recurso. Mas estas não são soluções estruturais.

Há pois um segundo nível de actuação muito distinto: o das soluções estruturais. Só estas poderão dar garantias de resolver o problema de forma sustentável e a longo prazo, mas têm que ser desenvolvidas de forma prudente, meditada, com muito conhecimento e bom senso. Nunca precipitadamente, para acorrer aos momentos de crise.

Para que se alcancem os resultados desejáveis, terão que assentar na investigação, na correcção técnica e na aplicabilidade prática, bem como nos legítimos anseios e aspirações das pessoas que vivem, ou sobrevivem, nas regiões mais vulneráveis.

E, em minha opinião, não são catadupas de diplomas legais, emanados de São Bento ou do Terreiro do Paço para todo o pequeno, mas tão diverso, território nacional que poderão resolver o problema. Se atentarmos bem, toda a legislação já publicada pelo menos desde 2006 teria permitido corrigir, se tivesse sido aplicada de forma operacional, um grande número das situações mais perigosas existentes.

Há um conjunto de medidas que têm de facto âmbito nacional (por exemplo: emparcelamentos, incentivos fiscais, simplificação do cadastro, etc.) mas no que diz respeito à prevenção dos incêndios só serão eficazes as concebidas para regiões concretas, aplicadas a nível municipal e intermunicipal, por vezes a nível distrital ou regional. Uma medida correcta para a vertente noroeste da Serra de São Mamede poderá não funcionar sequer na mesma serra do lado Sul ou Poente. Uma medida conveniente para o Alto Minho poderá não ser eficaz em Trás-os-Montes ou na Beira Interior, etc. Estas medidas têm também que ser tomadas depois de ouvidas as pessoas, as juntas de freguesia, as associações de produtores florestais, de agricultores, de caçadores, auscultando os seus conhecimentos, explicando os objectivos, garantindo a sua cooperação.

As leis existentes, algumas com mais de dez anos, já definiam as atribuições das comissões distritais e municipais de defesa da floresta contra incêndios. Mas estas funcionaram?

Conseguiram estas comissões, ou os seus dirigentes, que sapadores e bombeiros, em conjunto com o SEPNA, funcionassem de forma articulada e sob um comando, garantindo que os bombeiros tinham conhecimento do trabalho feito ao longo do ano pelos sapadores e estes actuando, para além do plano genérico da sua acção, conforme as recomendações das brigadas de fiscalização que lhes dessem os contactos dos proprietários com necessidade de ajuda para a limpeza dos seus terrenos ou para a realização das necessárias queimadas?

Os serviços do INCF e do Ministério da Agricultura já têm ou podem ter, só por si ou em colaboração com as Universidades e o IPMA, meios para cartografar no país as áreas segundo as Classes de Risco de Incêndio. Essa cartografia pode e deve ser disponibilizada aos Gabinetes Florestais Municipais, que provavelmente serão mais eficazes se trabalharem inter-municipalmente, os quais em conjunto com sapadores, bombeiros e a GNR, serão capazes de definir as áreas e os modos prioritários de actuação. Para isso não é preciso nova legislação. É preciso sim, conhecimento, disciplina, capacidade de organização, determinação na execução e responsabilidade no comando. E meios, ou utilização racional dos disponíveis.

A legislação produzida em Portugal sobre esta matéria – como se pode ver na tese de doutoramento do Tiago Oliveira que vai ser defendida no próximo dia 6 no ISA — tem sido directamente proporcional (!) à intensidade dos incêndios mas não tem resolvido o problema. Pelo contrário, a prática demonstra-o, estes têm vindo a agravar-se.

Mais leis estão agora a ser elaboradas. Imagine-se que nas propostas de diplomas legais actualmente em apreciação até se determina que os matos não possam ter mais do que 50 cm de altura! É preciso não conhecer o campo ou a natureza, nem ecologia, nem silvicultura. Os matagais, nos terrenos mais pobres, são necessários e desempenham funções ecologicamente importantes, contrariando a erosão, melhorando a infiltração da água no solo, fazendo sombra ao renovo do arvoredo, ajudando algumas espécies cinegéticas, escondendo da vista de predadores as crias mais vulneráveis, dando abrigo e comida a muitas aves e mamíferos, garantindo a sobrevivência de algumas espécies protegidas, permitindo a manutenção de regimes silvo-pastoris fundamentais para criadores de gado em particular de caprinos e bovinos. Mas também os matos precisam de ser racionalmente geridos, constituindo mosaicos na paisagem, de variada estrutura e idade, frequentemente com o recurso a queimadas que, se forem feitas na época e de forma adequada servirão para suster os grandes incêndios no Verão.

Quando há mais de quarenta anos, na sequência da aprendizagem que fiz com o grande pioneiro da “Ecologia do Fogo”, Edwin Komarek, o consegui trazer por várias vezes a fazer conferências e seminários em Portugal, deu-se início a acções de prevenção dos incêndios com base em programas de fogo controlado. Realizei os primeiros fogos controlados que se fizeram no Século XX no âmbito dos Serviços Florestais, pelo que fui superiormente admoestado e até ameaçado de prisão! Foi em seguida que o colega e amigo, Eng. Moreira da Silva conseguiu realizar planos de fogos controlados numa escala apreciável quer no âmbito da Circunscrição Florestal do Porto quer no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Estes trabalhos entusiasmaram jovens estudantes da altura entre os quais o Francisco Castro Rego.

Já então foi dito e escrito que combater os incêndios é o último recurso. Por vezes não se conseguem mesmo combater e é desumano colocar bombeiros na frente de incêndios que desenvolvem temperaturas capazes de tudo derreter, até jantes de automóvel.

Porque é que o Estado português gasta dez vezes mais em meios de combate do que em prevenção?

Os incêndios previnem-se e para isso é preciso ordenar a paisagem, criar mosaicos de biodiversidade, alternar superfícies florestais com culturas agrícolas, quebrar a continuidade dos combustíveis, se necessário queimando-os de forma competente durante as épocas em que é possível fazer “fogos frios”. Fogos em que se liberta fumo branco (carregado de humidade) e não fumo preto. Fogos em que as chamas atingem pouca altura e são fáceis de controlar. Fogos com os quais realmente se aprende a lidar com o fogo. Komarek disse-nos vezes sem conto: se não fizerem fogos terão grandes incêndios. Os nossos antepassados sabiam-no. Poucos são hoje os que ainda sabem, mas há já felizmente entre nós quem saiba. Que vimos nas imagens televisivas de Pedrogão? Centenas de bombeiros, com risco da própria vida, generosamente, “regando” chamas alterosas e estas imparáveis, a progredir para as copas, para a as estradas, para as casas. Que vimos quando chegaram os sapadores espanhóis? Com o apoio de uma máquina pesada, distanciados do incêndio mas em posição estratégica, abrindo um aceiro para iniciar um contra-fogo. Aí viria mais tarde a morrer a frente do incêndio. Mas não são só os espanhóis que sabem. É assim que actuam as equipes de sapadores das empresas de celulose que tem sido tão subestimadas.

Que foi feito dos GAUF (Grupos de Análise e Uso do Fogo) que apresentavam resultados tão promissores?

Usar o fogo pode ser, em muitos casos, a forma mais económica e ecologicamente mais adequada de reduzir o risco de incêndio. O conhecimento entre nós existe, a capacidade para o aplicar também. O Professor Francisco Castro Rego doutorou-se nos EUA e, há cerca de trinta anos, deu início na UTAD ao desenvolvimento dos estudos e investigação nesta área. Vários colegas (Hermínio Botelho, Paulo Mateus, Paulo Fernandes, António Salgueiro entre outros) são silvicultores muito competentes, fruto desse começo. Um pouco mais tarde, no Instituto Superior de Agronomia, o Professor José Miguel Cardoso Pereira, depois de se doutorar também nos EUA, tem vindo a constituir equipas internacionais com grande capacidade e reconhecida competência nas áreas da detecção remota e prevenção de incêndios nos espaços rurais, dominando e sabendo aplicar com eficácia as mais modernas tecnologias, utilizando satélites e Sistemas de Informação Geográfica.

Aproveite-se eficaz e racionalmente o conhecimento destes profissionais e de outros existentes nas nossa Universidades que com eles colaboram e caminhar-se-á com mais segurança no sentido de, a prazo, prevenir os incêndios no espaço rural.

Mas não se deixe que se promovam demagogias, muito menos através de legislação.

Está em curso uma campanha assanhada contra o eucalipto a qual, já vem de longa data, mas não assenta em qualquer conhecimento fundadamente científico. Um bosque de essências florestais endógenas, como um carvalhal ou carrascal denso, poderá constituir maior perigo de incêndio que um eucaliptal bem implantado e profissionalmente gerido. O mal dos pinhais e eucaliptais de Pedrogão não adveio das espécies que os constituíam, mas do estado desordenado em que se encontravam. Como os que se encontram em muitas outras áreas sobretudo do centro e norte do país, do Alto Alentejo ou de partes das serras do Algarve. Até o tão propalado mito de que o eucalipto seca tudo em seu redor vem sendo contrariado por minuciosa investigação científica. A azinheira ou a esteva poderão explorar a água do solo de forma pelo menos tão eficaz como o acusado.

Note-se que não estou a defender o eucalipto (que necessita de quem o defenda, dado ser matéria prima muito importante para o nosso PIB, para garantir uma parte importante das nossa exportações, grande número de postos de trabalho e constituir a única receita de muitos habitantes do interior, só sendo útil se existir sob a forma de matas ordenadas) mas sim a chamar a atenção para a irresponsabilidade das afirmações que assentam apenas em preconceitos (ou propositadas distorções da realidade) e não são fundamentadas nem no conhecimento, nem nas prioridades das pessoas e do país. O Henrique Pereira dos Santos propôs, e essa é, em minha opinião, uma solução inteligente e muito interessante, não a proibição pura e simples de novos eucaliptais mas que a instalação destes obrigue à plantação proporcional de espécies endógenas ou à conservação de espaços naturais, à semelhança do que já se faz com os “bancos de carbono”. Seria assim, e cito-o, a criação de “créditos de biodiversidade”, em que as espécies produtivas como eucalipto, pinheiro bravo, pinheiro manso e sobreiro suportariam a gestão das espécie “não-comerciais”. Um pouco como o mercado de carbono, mas para floresta nativa. Uma fábrica que emite CO2 tem de comprar créditos de carbono; uma floresta comercial pode ter de comprar créditos de floresta de conservação. Quem planta 10 ha de floresta de produção tem de ter ou financiar 1 ha de floresta de conservação. Assim, o investimento florestal impulsiona a conservação da floresta. Em vez de proibir, promove-se o equilíbrio.”

Bem melhor que proibir, é ouvir, compreender, ajudar, ensinar, colaborar, estimular e resolver

Uma última nota. Creio que pela primeira vez na minha vida profissional ouvi os meios de comunicação portugueses referir que o fogo teve origem em fenómeno natural. Desta vez tem-se falado menos nos incendiários. De facto, os estudos da PJ mostram que os fogos de origem criminosa são menos de 3%. Mas tranquiliza e irresponsabiliza as consciências ter um bode expiatório.

No entanto mais de 80% dos fogos nascem a menos de 500 metros de uma estrada ou de uma povoação, isto é, são de origem humana, por descuido, falta de educação ou negligência. Quer isto dizer que desde que haja combustível acumulado em excesso há uma forte probabilidade de, mais cedo ou mais tarde, eclodir um fogo. E se este escapar ao controlo, não sendo dominado nos primeiros minutos, a probabilidade de degenerar num incêndio incontrolável é muito grande. Portanto, para além de se alertar e educar a população para práticas mais cuidadosas, há sobretudo que reduzir os combustíveis, diversificar a paisagem, construir um mosaico equilibrado e harmonioso mais propício à segurança e defesa de pessoas e bens, mais conveniente para a conservação da natureza e dos recursos naturais.

Em resumo: os diagnósticos estão feitos e refeitos. Há conhecimento técnico, existem muitos meios disponíveis. A legislação é em grande parte mais do que suficiente (há quem diga que excedente). Mas o fulcro tem estado fora do sítio. Falta sobretudo capacidade para coordenar, gerir e comandar. Para selecionar e promover os agentes de acordo com o saber e o mérito. Avaliando os resultados. Tem faltado aptidão para governar. É necessário agirmos sim, não apressadamente, mas com sabedoria, talento, ponderação, competência e muita determinação.

Lisboa, 30 de Junho de 2017

Engenheiro silvicultor, antigo quadro dirigente da Direcção-Geral de Florestas