O exercício da governação é um processo complexo que deve ser orientado por bom senso, sentido da realidade e grande honestidade. A honestidade de um governante tem de abranger as opções ideológicas, uma indefetível coerência e a melhor evidência científica disponível.  Uma das parte mais importantes do processo governativo é, dentro das competências legalmente atribuídas, a elaboração de normas, incluindo legislação. A produção de legislação exige rigor, atenção ao detalhe, clareza e em conformidade com quadro legal já existente. Nem sempre é fácil e sei bem quanto custa, pessoal e politicamente, ter de emendar um diploma por constatar erros ou inconformidades com o desejado ou com o possível. Acontece a todos. O mais recente despacho do Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Saúde (SEAS), sobre o tabaco, ainda que sendo de intenção louvável, é o exemplo de um texto que poderá ter alguns problemas que carecerão de elucidação jurídica.

Em primeiro lugar é de sublinhar a intenção manifestada de tornar o SNS livre de fumo de tabaco até 2020. Falta que o Estado, através do seu poder legislativo, em especial pelo uso das competências da Assembleia da República (AR), crie uma estratégia firme e exequível para tornar Portugal livre de fumo de tabaco num horizonte temporal que não exceda quinze anos, idealmente dez. Não é utópico, não é impossível. Outros países estão na mesma senda e só a influência dos interesses económicos sobre a política portuguesa pode explicar a timidez permanente no que diz respeito à luta contra o fumo de tabaco e à indústria que o sustenta. A atual maioria parlamentar, deve reconhecer-se, tem sido das mais acomodatícias em face dos interesses tabaqueiros apesar de querer dar uma imagem diferente. Em 2007, sob a égide do PS, a AR já tinha destruído as melhores intenções do ministro da saúde em exercício e acabou por aprovar uma lei tímida e cheia de defeitos que têm sido difíceis de remover.

Ora, por mais que se tenha tentado restringir as oportunidades para fumar, as três versões sucessivas da Lei n.º 37/2007 de 14 de agosto (lei do tabaco) acabaram sempre por contemplar espaços para fumadores, ainda que de forma muito restrita e de acordo com um conjunto de normas, previstas no nº 1 do artigo 5º, que tardam em ser regulamentadas. Neste contexto, não pretendendo desde já a eliminação completa de espaços para fumadores, há que reconhecer, com humildade, ter havido a necessidade de fazer cedências políticas, em 2015, para conseguir a progressiva proibição de fumar em locais de trabalho como restaurantes, bares, casinos (embora só parcialmente) e espaços de diversão noturna. Foi um passo limitado, o de 2015, necessariamente sujeito a um prazo de aplicação alargado por força das disposições legais em vigor desde 2007, mas foi um passo determinante.

O atual Governo tentou, sem sucesso – o que demonstra como o abraço das tabaqueiras é tão grande que abarca toda a esquerda do hemiciclo – impor a proibição de fumar a uma distância de 100 metros das janelas dos edifícios onde se prestem cuidados de saúde. Medida justa nas intenções, tecnicamente difícil de implementar e, consequentemente, chumbada. Deveria ter proposto a eliminação da possibilidade de fumar no espaço exterior das instituições de saúde, ou seja, no perímetro do espaço destinado a fins de saúde – para dentro da “cerca” do hospital ou centro de saúde – ou, de forma mais abrangente, considerar um espaço livre de fumo em torno dos edifícios. Já o escrevi, entendo que o ministério da saúde não terá feito o “trabalho de casa” político que deveria ter feito para conseguir todas as alterações que se propunha conseguir, mas tenho noção das dificuldades e respeito o esforço de negociação a que outros ministérios e a AR, sempre reivindicativa de mais direito à saúde e teimosamente defensora das noxas mais comuns, obrigam.

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Dito isto, chegamos ao despacho n.º 7431/2018 de 31 de julho do SEAS. Choca que o primeiro número seja uma contradição. O documento propõe, depois de um preâmbulo infindável e inconsequente, acabar com o fumo de tabaco no SNS – em cujas instituições já é proibido fumar – para depois, sob a forma de despacho e sem norma habilitante, propor a instalação de espaços para não fumadores nas zonas ao ar livre. Ora, a lei em vigor não só permite que se possa fumar nas zonas ao ar livre das instituições de saúde – exceção à proibição que está prevista no nº 3 do artigo 5º da lei – como não prevê que se construam zonas para não fumadores em qualquer área específica das instituições de saúde, exceto naquelas previstas no número 1 do artigo 5º – “podem ser criadas salas exclusivamente destinadas a pacientes fumadores em hospitais e serviços psiquiátricos, centros de tratamento e reabilitação, unidades de internamento de toxicodependentes e de alcoólicos, lares de idosos e residências assistidas, desde que”… e lá vem o conjunto de normas que ainda carecem de portaria reguladora que tarda em ser produzida, como prevê a alínea d)…”disponham de um sistema de ventilação para o exterior com extração de ar que permita a manutenção de uma pressão negativa, definido em função da lotação, dimensão e localização da sala e autónomo do sistema geral de climatização do edifício, a regulamentar por portaria a aprovar pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da economia, do ambiente e da saúde”. Note-se que todas a áreas de não fumadores deverão obedecer aos preceitos enumerados no artigo 5º da Lei, estejam onde estiverem e, daí, a ainda maior urgência na elaboração da Portaria.

Sendo assim, o despacho agora em apreço, o de 31 de julho do SEAS, prevê espaços para fumadores que não se percebe serem “redis” ao ar livre, esplanadas de cafés para utentes e trabalhadores ou cubículos que ainda terão de ser regulamentados. Convenhamos que se exigiria maior rigor.

Todavia já há hospitais, como o IPO de Lisboa, que entendeu decretar-se como um espaço livre de fumo de tabaco em todo o seu perímetro. Excelente decisão. Não faz sentido assistir ao espetáculo degradante de profissionais de saúde, doentes e seus acompanhantes, sorvendo beatas à porta dos locais onde se tratam problemas que muitas vezes são devidos ao consumo de tabaco. Pior ainda, um verdadeiro insulto ao serviço nacional de saúde, a quem o paga e às instituições que tratam cancro – de forma muito maioritária associado ao tabaco – seria continuar a permitir que se fumasse dentro dos IPO. Esta decisão, de proibir o fumo dentro de todo o perímetro do IPO de Lisboa, que parece chocar com o disposto no número 3 do artigo 5º da lei do tabaco, na sua versão mais recente, está perfeitamente justificada pela alínea bb) do artigo 4º que diz ser proibido fumar “em qualquer outro lugar onde, por determinação da gerência, da administração ou de outra legislação aplicável, designadamente em matéria de prevenção de riscos ocupacionais, se proíba fumar”. A gerência do IPO de Lisboa, em defesa da saúde pública, decidiu proibir o fumo dentro do espaço de que é proprietário. Nem poderia ser de outra forma quando a obrigação de uma instituição de saúde é prevenir as doenças, incluído as devidas ao fumo do tabaco, e promover a desabituação tabágica.

Não faz sentido ter escrito que “os estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), independentemente da respetiva natureza jurídica, definam e prossigam no âmbito das respetivas instituições, incluindo as áreas exteriores dentro do respetivo perímetro, uma estratégia no sentido de tornar os estabelecimentos do SNS, livres de fumo de tabaco” para depois acrescentar que é objetivo “criar espaços próprios para fumadores, no exterior dos estabelecimentos, com as condições adequadas, salvaguardando a imagem de quem os utiliza – terá de ser em beco escuro e longe dos olhares críticos -, nos termos do artigo 4.º da Lei n.º 37/2007, de 14 de agosto, na redação dada pela Lei n.º 63/2017, de 3 de agosto “- ou seja, remete para a portaria que não existe.

Agora, na sequência do eloquente e verborreico despacho do SEAS, não faltará quem venha exigir que se montem tendas, delimitem espaços, levantem muros, para que se possa fumar em lugares onde, paradoxalmente, se anuncia querer “livres de fumo”. Como julgo ter tornado evidente, o despacho n.º 7431/2018 de 31 de julho carecia de mais uma revisão da lei do tabaco, restringindo as oportunidades para fumar ao ar livre nas instituições de saúde, e da elaboração, finalmente, da portaria regulamentadora dos espaços destinados a fumadores.

É caso para dizer que mais valia o SEAS ter estado quieto e segurasse a pulsão de assinar legislação, a mesma pulsão que o levou a assinar o estulto diploma dos croquetes e bolas de Berlim. Talvez venha agora uma clarificação governamental e se imponha a criação, no SNS, de zonas ao ar livre, onde nos possamos empanzinar de pastéis de bacalhau ou nata, legalmente e sem ter de ir ao café da esquina.