A pandemia surpreendeu os que julgavam acreditar piamente na ciência. Afinal esta parece não estar à altura nem em condições para nos garantir a segurança. Fruto dessa decepção surgem relatos de países com governos autoritários que aparentam combater melhor a pandemia. Há quem considere que o Ocidente está a perder o combate higiénico porque preza as liberdades individuais, não pune a desordem nem os abraços, os beijos, se limita a sugerir que as pessoas não se toquem, não encerra as escolas nem proíbe o regresso aos escritórios e às empresas. Na China, que terá domado o vírus, populações inteiras foram fechadas em casa à força e agora já podem sair. Dizem-nos que se encontram a salvo.

Faz parte do ser pessoa o poder ser livre ao ponto de só em liberdade ser possível que atinja a plenitude humana. Mas nem vou entrar por aqui. Limito-me a observar o que julgava óbvio no que diz respeito à ciência, pelo menos desde Karl Popper. Ou seja, que a ciência não nos diz a verdade nem nos dá certezas, mas se limita à procura dessa verdade. Esta busca não é possível sem liberdade pois sem liberdade não há crítica, sem crítica não há pensamento e sem pensamento não há ciência. Sem ciência não se descobrem vacinas e é precisamente por essa razão que esta pandemia, ao evidenciar as nossas fragilidades, nos deixa como que despidos e inseguros, serve também para nos mostrar o valor da liberdade, a importância que esta tem para a nossa vida e para a nossa segurança.

Os dias incertos que vivemos deviam salientar a importância da liberdade, o valor da nossa civilização, a certeza de que este é um percalço necessário no caminho que encetámos há séculos.

2 A ideia de que para um liberal o lucro vale mais que tudo o resto é uma máxima socialista. Outra é que os liberais querem um capitalismo selvagem, sem regras. Que o capitalismo sem regras não funciona é algo que Adam Smith disse e os pensadores liberais repetiram. A questão está em saber se essas regras são decretadas e impostas por um poder com pouco contacto com a realidade ou se são acordadas e aceites pelos cidadãos. Ora, essas regras que regem o capitalismo são, antes de mais, morais e éticas. Uma é que a vida é muito mais que o lucro, não porque as pessoas sejam genuinamente boas e generosas (que não são) mas porque a confiança é a base da vida em comunidade e das trocas comerciais. Veja-se como surgiu o dinheiro. Sem confiança o dinheiro como o encaramos hoje de pouco vale, razão pela qual a forma como os bancos centrais estão a lidar com o endividamento público e privado pode colocar em causa essa confiança acentuando ainda mais uma crise que existe porque as regras que os estados impuseram conduziram-nos a um endividamento crónico.

3 Outro equívoco é a redução da democracia à vontade da maioria. Se o fosse a democracia limitar-se-ia ao voto e a democracia liberal vai além disso. Votar já os gregos faziam. O conceito de democracia, tal como foi pensado a partir do século XVIII, além do voto, baseia-se na limitação do poder político, que se consegue com a separação de poderes e o respeito pelos Direitos Fundamentais. A grande função da democracia é impedir que o poder caia nas mãos de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria. Para tal, um dos seus maiores desafios é a substituição sem violência dos detentores do poder. É compreensível que para os que sonham com utopias este seja um objectivo demasiado simples. No entanto, a história mostra-nos que compreender o que é simples, viver com simplicidade, refrear-nos, é muito mais difícil que cavalgar causas com o intuito de mudar o mundo.

4 António Costa ameaçou com uma crise política se não for aprovado o orçamento para 2021. Diz-se que se trata de teatro porque o Presidente deixará, dentro de dias, de poder dissolver o parlamento. No entanto, a jogada pode ser outra: Costa quer forçar um entendimento à esquerda e, caso não seja bem-sucedido, culpar o BE e o PCP por o forçarem a negociar com o PSD. O primeiro-ministro já descartou essa hipótese, mas sabemos bem que o que o primeiro-ministro diz num dia, seja em on ou em off, de pouco vale. A Costa faltam ainda três anos de legislatura. Vai ser penoso para quem tem pela frente a maior crise económica que o país já conheceu. Vamos assistir a muitas jogadas políticas deste primeiro-ministro com o objectivo principal de sair disto sem um beliscão. Que o orçamento tenha pouca ou nenhuma relação com a realidade e precise de ser alterado ainda os deputados que aplaudem a sua aprovação não se sentaram, parece não preocupar ninguém. Não deixa de ter a sua graça que as regras, que para os liberais ditam o funcionamento dos mercados, não se apliquem aos políticos que as gostam de impor ao funcionamento dos ditos mercados. Tudo junto vai ser bonito e doloroso de ver. Bonito porque entretém. Doloroso porque é um entretenimento caro e perigoso. Pago e vivido por nós.

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