Vejo, sem curiosidade, o drone que zumbe por cima de mim, a pairar nervoso sobre a praia. A uns metros, um adolescente brinca com os comandos do aparelho. Nada de novo. A privacidade, como o silêncio, são os derradeiros luxos da civilização.

O silêncio há muito que se perdeu para quem não o pode pagar. A privacidade vai-se perdendo aos poucos, sem anúncio. O que começa por uma identificação, um dedo de tinta num papel, passa a nome, morada, idade, género, estado civil, orientação sexual, identificação política, religião, dieta alimentar, estilo de vida, temperatura, doenças prévias e actuais, relações amorosas e amizade. Num ápice, se compararmos com o tempo do universo, o que fazíamos, antes registado em pergaminhos, desenhos, cartas e textos, é agora partilhado em posts nas redes sociais, memorizado no telefone, assinalado na portagem da autoestrada, visível no extracto do multibanco, gravado pela câmara de vídeo em zonas de risco. Cada movimento é transformado em número, em conjunto de dados, em algoritmos interpretáveis ao serviço de quem os cria.

A cada episódio de medo, o mundo exige segurança. Está montada a justificação. Planeia-se a abordagem: um ponto de controlo aqui para medir a temperatura; um inquérito ali, para se saber ao que vai; uma câmara mais acima, virada para o prédio para proteger dos ladrões; outra câmara na rua para segurança de quem passa; um acesso a computadores privados para controlar hackers; uma conversa com a vizinhança do bairro, a quem se pede que, em nome da ordem e da segurança, se esteja alerta e se reporte comportamentos desviantes da norma. E o que é norma hoje, pode ser estranho amanhã. O que fazemos e o que somos passa a ser propriedade de quem está no poder. Pela segurança, afasta-se quem tem outra cor de pele, quem pensa, age, veste, ama ou reza, de forma diferente. A diferença assusta, não se conhece. Ou conhece-se mas não se quer. A liberdade individual traz muitos problemas.

Já vimos banir as diferenças ao longo da história, mas nunca estivemos tão perto de ver essa diferença anulada, apagada do registo por uma tecnologia que nos controla. Enquanto o adolescente brinca com o seu pequeno drone num país aparentemente democrático, leio um artigo de investigação sobre a inteligência artificial e a sua aplicação na China (Ross Andersen, in The Atlantic, September 2020 issue). A China orgulha-se do sistema de vigilância que cobre a quase totalidade do espaço público. Através desse sistema, baseado em algoritmos, é possível classificar pessoas de acordo com o que se determina como objectivo. Do nível de risco de contrair uma doença, ao nível de risco de se envolver em actividades terroristas, tudo é mensurável através da análise algorítmica do comportamento. A teoria já era conhecida. A aplicação prática acontece em Xinjiang, no noroeste da China. Um milhão de homens e mulheres de etnia Uigure são mantidos em apertada vigilância: os seus telefones e cartões de dados são escrutinados e estão impedidos de utilizar software encriptado. Tudo quanto fazem é analisado pelo governo, e este impõe uma política de aculturação intensiva. Para além das ferramentas tecnológicas, o governo recorre a cidadãos e cidadãs chinesas de etnia Han para viverem nas mesmas zonas e monitorizarem a assimilação cultural, tarefa que pode incluir coabitar com os Uigures, ou dormir na mesma cama das mulheres cujos maridos foram presos por um qualquer pretexto. Assim se faz a reeducação. O número de crianças por família é controlado ao limite das mulheres serem obrigadas a abortar, a colocarem dispositivos intrauterinos ou a serem esterilizadas contra vontade. Assim se extermina uma etnia – com paciência e perseverança. Assim se reinventa a história, fazendo desaparecer da memória colectiva culturas não vigentes. Sem subterfúgios.

Ontem, com a Cambridge Analytica. Hoje na China com os Uigures. Amanhã, onde? Com quem?

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