A majestosa série “Band of Brothers” da HBO, que retrata a história da Easy Company – uma das unidades de maior sucesso na história militar americana, e que fez parte do Exército dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, apresenta no penúltimo dos seus 10 episódios, Why We Fight, um vislumbre de, porventura, o que de mais terrível esta guerra produziu, os campos de concentração. Why We Fight – Porque Lutamos, em português – mostra uma razão, mais uma, porque a guerra teve de ser travada. Ainda que cronologicamente, de um ponto de vista lógico, o “porquê” devesse surgir no início, aqui faz sentido porque os Aliados apenas tiveram conhecimento total da escuridão que perpassava o espírito Nazi no decorrer da guerra na forma dos campos de concentração (e morte) que tão diligentemente organizaram.

Neste momento, o homem trava uma outra guerra. Paradoxalmente, contra si próprio e, nesta guerra, ou chega a uma trégua atempadamente ou irá perder em toda a linha, arrastando consigo para um local incerto aquilo a que chamamos “vida”. Tendo em conta tudo o que está em jogo, nunca é demais perceber por que lutamos. E, se ajudar, por quem lutamos.

Edmund Burke, filósofo e político irlandês que viveu no século XVIII, considerado o pai do conservadorismo político, apresenta uma ideia interessante para justificar a Revolução Gloriosa na Inglaterra, por oposição à Revolução Francesa, que nascia precisamente em França naqueles tempos. Considerava Burke, que a Revolução Francesa, ao pretender arrasar as tradições e costumes usados até então e construir tudo do zero, estava a começar mal, uma vez que a “sociedade não é constituída apenas pelos vivos”, sendo “um contrato entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer”. No que diz respeito aos mortos, argumentava Burke, estes estão presentes no mundo pelas heranças que deixam, sendo essas heranças as tradições e instituições que constituem a sociedade que recebemos. A ideia, contudo, que mais importa realçar, é a da visão da sociedade como um contrato, em que os “vivos” são apenas um dos contraentes, fazendo parte do acordo os “ainda por nascer”. E esta forma de olhar para a sociedade poderá fazer toda a diferença quando se fala de Alterações Climáticas.

As alterações climáticas (simplificando, uma mudança significativa e duradoura na distribuição estatística dos padrões meteorológicos) são reais. Os dados não mentem: nos últimos 150 anos, a temperatura média mundial subiu quase 0,8º C (aproximadamente 1º C na Europa) e, de acordo com o IPCC – o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, órgão das Nações Unidas – é provável que o aquecimento global atinja 1,5° C entre 2030 e 2050, se continuar a aumentar ao ritmo atual. Em 2015, 97% dos cientistas do clima já davam como garantida a atividade humana como a principal causa das alterações climáticas.

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Presentemente, os impactos das alterações climáticas nos sistemas naturais e humanos são avassaladores e globais, ou seja, estendem-se por todos os continentes e oceanos, afetando, de um modo geral, a maioria das formas de vida na Terra. Assistimos ao aumento do nível do mar, com impacto na vida das populações costeiras; ao aumento da frequência e intensidade de fenómenos climáticos extremos, como inundações, tempestades, furacões e secas; ao aumento da escassez de água em algumas partes do globo (que levam desde logo à desertificação e diminuição da produção agrícola, podendo estar ainda na origem de situações de conflitos armados); a alterações na previsibilidade das estações do ano (e, em consequência, o planeamento e qualidade de colheitas resulta pior, com a correspondente escassez de alimentos). A vida selvagem é também profundamente afetada – as alterações climáticas levam à perda de biodiversidade e de ecossistemas importantes, por via da redução dos seus habitats ou mudanças na composição dos mesmos (sendo disso exemplo a crescente acidificação dos oceanos, que destrói os recifes de coral, com impacto destrutivo nesse ecossistema). Assistimos, por todo o globo, a mudanças de padrões de migração, à diminuição global da abrangência geográfica e da abundância de espécies terrestres e aquáticas.

E se o cenário é já preocupante no presente, para o futuro tudo se torna ainda pior. Os efeitos somam-se e acumulam-se e as gerações futuras vão sofrer (ainda) mais em consequência das ações das gerações presentes. Com o aumento gradual da temperatura, os recursos hídricos vão diminuir um pouco por todo o mundo, levando à inviabilidade de explorações agrícolas e, naturalmente, à falta de alimentos que afetarão previsivelmente as populações mais pobres e expostas. Vamos assistir a fenómenos como ondas de calor e vagas de incêndios com maior frequência e severidade, com elevado impacto económico. Se nada for feito, no final do século, a vida em torno da região do equador estará severamente condicionada; com um aumento da temperatura em torno dos 4º C, estima-se que entre 350 a 400 milhões de pessoas viverão em zonas urbanas expostas a seca extrema. Quanto aos efeitos sobre a restante vida na Terra, Elizabeth Kolbert, no seu premiado e recomendadíssimo livro A Sexta Extinção, documenta os efeitos das alterações do clima na biosfera, apresentando-nos, humanos, como os causadores da sexta extinção em massa a que o globo já assistiu nos 4 mil milhões de anos da existência da vida.

Demoraram preciosos anos até estas questões estarem (um pouco) mais na ordem do dia. Ocorreram periodicamente conferências à escala global com representação de vários países, onde acordos e compromissos genéricos iam sendo alcançados, mas foi, sobretudo, um lento processo de consciencialização global. Em setembro de 2015, contudo, um passo fundamental foi dado, com a aprovação da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta agenda, composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e assinada por 193 membros da ONU (que lhe confere alcance global), aborda várias dimensões do desenvolvimento sustentável (económico, social e ambiental). É o resultado do trabalho de milhares de mentes, distribuídas por todo o mundo, que pretendem definir um novo modelo de desenvolvimento e que tem por base acabar com a fome e a pobreza à escala global, fomentar o bem-estar das populações, combater as alterações climáticas e promover a biodiversidade no planeta.

Carl Folke, do Stockholm Resilience Centre, desenvolveu uma visão dos 17 ODS agrupados em camadas, como um bolo de casamento, com as camadas a corresponderem à “Biosfera”, à “Sociedade”, à “Economia” e às “Parcerias”. A primeira camada, a Biosfera, é a base onde assenta a Sociedade; no topo desta encontra-se a Economia e a cereja em cima do bolo será o ODS 17, as “parcerias para o desenvolvimento”. Em traços gerais, sem uma Biosfera estável é difícil construir uma sociedade sólida e funcional; e sem uma sociedade sólida e funcional, não se pode construir uma economia que sirva a todos As parcerias são parte crucial para acelerar e cimentar o processo.

Bem a propósito, o Fórum Económico Mundial, no relatório “Global Risks Report 2020″, posiciona o fracasso em mitigar as alterações climáticas como um dos principais riscos para os negócios, um risco que continua a crescer, à medida que as consequências das alterações climáticas aumentam. Sem resolver este problema, que afeta a base do modelo, pura e simplesmente não vamos conseguir atingir o tão esperado desenvolvimento sustentável, condizente com o potencial da humanidade. Todos os dias temos perdido um pouco desta luta. Mas todos os dias, novos soldados – na aceção de cidadãos que despertam para o problema, se juntam ao combate. Precisamos de, rapidamente, substituir, sobretudo, os velhos modelos conceptuais que apenas olham para questões financeiras e/ou de curto prazo, por outros mais abrangentes, que analisem a criação de valor e os efeitos a longo prazo das nossas ações e atividades, não só do ponto de vista económico, mas também social e ambiental.

Já sabemos, então, porque lutamos e por quem lutamos. O final do século está a 80 anos de distância. A maioria das pessoas que vão ser afetadas ainda não nasceu. A ideia de Sociedade, na visão intergeracional de Burke, impele-nos a fazer algo. Evitar o sofrimento de milhares de milhões de pessoas no futuro é o melhor presente que as gerações atuais podem dar e uma verdadeira prova da capacidade de superação humana.