Na entrevista que deu à Acção Socialista – o jornal oficial do PS, agora em versão digital – António Costa afirma que “há um problema geral de esvaziamento de alternativas entre os partidos políticos tradicionais”. À pergunta seguinte, contudo, para explicar o não surgimento em Portugal de movimentos como o Podemos espanhol, o líder socialista responde que “o PS tem conseguido corporizar o voto de alternativa”, frase que faz aliás a capa do jornal.

Nestas duas respostas, e sem prejuízo da economia geral da entrevista, que é longa e merece ser lida com atenção, concentra-se um mundo de ambiguidades e contradições sobre o sistema político das democracias em geral e da portuguesa em particular.

Há uma contradição entre as duas afirmações, que o restante da entrevista não resolve: confirmando-se o esvaziamento de alternativas entre os partidos tradicionais, a pergunta óbvia, de dupla face, é como corporiza o PS o voto de alternativa e porquê, sendo ele um partido político (tão) tradicional (quase um paradigma de tradicionalismo)? Como? E porquê?

Porque é que o faz, ainda António Costa tenta explicar: porque em Portugal não há uma coligação (um grande “bloco central”) que canalize votos para as extremas; porque o tempo dos movimentos alternativos apanha Portugal em contra-ciclo (recorda a propósito o Bloco em 1999); porque uma vaga de direita, a aproximar-se manifestamente do esgotamento, domina a Europa há anos; e porque os portugueses “têm hoje uma enorme vontade e expectativa” de mudança, e ele procurará “responder às expectativas criadas”.

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Em resumo, segundo o secretário-geral, o PS corporiza o voto de alternativa porque há grande expectativa em relação ao partido e às suas ideias (ainda mal conhecidas, mas só por enquanto); e porque os portugueses não elegeram até hoje um partido de ruptura, ciclo em que vivem vários países europeus, dominados pela direita ou por “centrões”.

Mas mais importante do que entender porquê é perceber como é que o PS pode corporizar a alternativa; que substância sustenta esse (a existir, bem entendido) capital político? Importa conhecer as respostas de António Costa.

UM. Desde logo, o exemplo da boa governação socialista (do governo Sócrates): reformas do Estado, políticas sociais, formação de adultos, investimento em ciência, eficiência energética, entre outras, são “marcas muito positivas” de acção governativa com uma “visão estratégica” correcta. Com resultados: o défice mais baixo de toda a democracia lusa, dívida inferior à média europeia em 2008. A corporização do voto de alternativa no PS, a aferir pela opinião do seu líder, far-se-ia em parte com base nessa (boa) memória de “governance” socialista.

DOIS. E o que promete António Costa? Como responde às acusações – referidas pelos entrevistadores – de ser desconhecido o seu pensamento sobre os problemas imediatos da sociedade portuguesa? Começa por assegurar que o PS não faz promessas que não possa cumprir; invoca como documentos de fundo a Agenda para a Década e o Programa de Recuperação Económica e Social (e ainda a Agenda de Lisboa, que diz conter o que devia ser “o programa da social-democracia e do socialismo democrático do século XXI”); e enumera uma lista de políticas e medidas:

Mobilização dos fundos comunitários e dos vistos gold para financiar um fundo de capitalização que reforce o capital das empresas (vista a insuficiência da existência de liquidez nos bancos). Políticas activas de emprego para jovens qualificados e programas para os desempregados de longa duração com menos qualificações. Um programa de reabilitação urbana focado na eficiência energética. Outro de combate à pobreza infantil e juvenil. E a estabilização dos rendimentos, em especial dos mais baixos, referindo ainda os reformados e a continuidade do aumento do salário mínimo.

A lista parece boa. E Costa promete um programa de governo na Convenção Nacional do partido, já na primavera.

Mas a pergunta crucial é outra: serão as medidas suficientes para “corporizar o voto de alternativa”? Diferem elas substancialmente do programa dos outros partidos do chamado “arco da governação”, desde logo dos da actual maioria, para consubstanciarem essa corporização? Serão suficientes para contrariar “o baixo nível de expectativas e confiança no futuro”, um dos “factores de estagnação da nossa economia”? Chegarão para restaurar “a confiança na política e nos políticos, (…) capital precioso, mas frágil, (…) que dificilmente se recupera”? A opinião de Costa sobre o sucesso da governação socialista recente corresponde à imagem que os portugueses dela têm? E se afinal já há regulamentos e propostas para os fundos europeus – Portugal 2020 -, que fazer com essas regras sem criar desigualdade ou frustrar expectativas?

Confesso-me céptico, mas não tenho respostas nem é esse o meu papel. Do lugar onde me situo, sem manifestações comprometidas de alinhamento partidário ou preferências pessoais, limito-me a verificar duas coisas:

As medidas enunciadas não serão uma verdadeira alternativa se outros partidos, como provavelmente farão, apresentarem medidas semelhantes; e se a sua bondade e razoabilidade não estão em causa, elas não contêm nada –  em termos políticos ou de mensagem – que seja de molde a entusiasmar as mentes cansadas dos portugueses, desconfiados dos políticos. Por outro lado, o PS não representa alternativa consistente, dada a sua natureza intrínseca de partido tradicional (tese de Costa), associado pela opinião pública (quase por instinto) ao cerne do sistema político.

O nervosismo que Costa revelou esta semana quando questionado “inopinadamente” por uma jornalista na rua – situação vivida por ele centenas de vezes na sua vida política -, poderá ser fruto de estupefacção pela rápida, demasiado rápida até, erosão da sua imagem pública ou do que entenderá como tal. Ou talvez se aperceba que afinal o PS não constitui alternativa ao esgotamento do sistema político europeu por si classificado como o “problema político central na Europa”. Ou ainda, finalmente, que o PS, corporizando embora “o voto de alternativa” – podendo ganhar (as) eleições -, como alternativa propriamente dita está tão profundamente esvaziado quanto qualquer partido tradicional, que aliás é.

E nesse caso o voto na alternativa seria apenas o resultado, infeliz e paradoxal, da falta de… alternativas. O voto é de alternativa, mas a alternativa não está no voto. Parece a mesma coisa, mas faz toda a diferença.

Professor do Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa