Não se impacienta, não se inquieta, não se espanta, não se altera. Ignora rumores, é alheio à intriga, descarta o que dizem dele, bem ou mal, mal ou bem. Parece nada esperar mas talvez espere tudo. Passos Coelho confunde? Sim, para dizer o mínimo.

Ou seja: ei-lo a usar hoje os mesmíssimos instrumentos de navegação que usou na travessia 2011/2015. Fornecidos quer pela sua própria natureza, quer pela crueza das circunstâncias da viagem, os instrumentos revelaram-se, sabemo-lo bem, indispensáveis ao mau tempo de então. E a avaliar pelos votos e resultados obtidos, a liderança sem estados de alma e os instrumentos provaram acerto: quatro anos depois Passos Coelho voltou a ser o primeiro.

Não me interessa, neste momento, saber se uns já esqueceram a dureza e crueza da viagem, se outros ainda acham que a rota deveria ter sido “diferente” ou se outros ainda exultam com selfies e “ronaldices”, achando hoje a vida mais bela que ontem.

O que me interessa agora – quando a travessia já não é a mesma, nem os mares iguais – é abordar o (arriscado) critério oposicionista de Passos Coelho. Uma escolha que produz legitimas dúvidas e consente demasiadas perplexidades ao persistir o líder do PSD no uso dos mesmos instrumentos de navegação e acreditando até na sua bondade. Acreditando contra ventos e marés (dos quais não toma nota); contra aquilo que se acha a lógica das coisas (mas ele não acha); contra o que recomendaria o menu do bom opositor (mas ele não o lê).

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Contestação interna? Tardias soluções autárquicas? Falta de resposta? Falta de discurso? Falta de escolhas? Não. Primeiro, a liderança tem o seu ritmo: esperar com infinita paciência que o mundo comungue do seu desagrado e dê razão às suas críticas. Sem estados de alma uma vez mais, tal a certeza que esse dia chegará e seja quem for que lá esteja sentado na chefia das tropas; segundo, também tem os seus calendários: decide quando quer e não em função da jocosa solicitude da opinião publicada, supostamente “preocupada” com os “atrasos” do PSD na questão autárquica. Só quando se tornou evidente que a concelhia de Lisboa não resolvia o problema da capital é que a liderança interveio. Não que ela achasse que teria sido conveniente mais pressa na escolha e divulgação de candidatos. Pelo contrário: “não achava de todo” (Passos Coelho dixit), por não encontrar sombra de “utilidade” nessa reclamada antecedência. Por outras palavras: entregar, escolhas e escolhidos, às vozes do mundo e deixá-los meses a fio ao lume da crítica, da enviesada exposição mediática e da intriga… para quê?

E finalmente o PSD, sim, tem um discurso que usa, aplica e pratica. É que ao contrário do que diz o poder e os seus companheiros da esquerda radical, as intervenções de Pedro Passos Coelho não visam estragar a festa da geringonça mas demonstrar que é a festa que está estragada de origem. Veio com defeito de fabrico. O defeito – e o fabrico – dispensam o PSD de mudar a lógica, a linha e o fundamento do seu discurso e porventura ainda mais, de procurar outro.

E quanto à falta – gritante, a meu ver – da outra metade do discurso, isto é, de futuro ou de algo de parecido com “o que ele faria no futuro se”, Passos Coelho cuida e zela pela herança que deixou, que é outro modo de falar do futuro: não é verdade que todos os dias a geringonça rescreve a história da anterior governação fazendo, com indecência e veneno, uma ficção do que ia sendo uma tragédia real? Que adultera, manipula e falseia dados, números, factos, informação, de modo a não deixar pedra sobre pedra da história e da herança da coligação?

Assim sendo, ocupa-se ele dessa história. E sem nunca abrir mão, nem baixar a guarda, ressuscita a herança. E se é a “isso” que o governo, o poder, a esquerda e os mal pensantes chamam “falar sempre do passado”, sim, o líder do PSD conta-nos como ele foi e não como dizem “falsamente” que ele foi. Quem porém não estiver distraído (ou obcecado com a duração da sua liderança que atrasa o ansioso desejo de um bloco central) notará que ele igualmente fala, claro está, do presente . Do presente da geringonça. Das suas manhas e artifícios, da sua agenda para o país, dos seu ilusórios feitos. Do permanente “fingimento” que tudo está bem, a andar bem, na “melhor direcção”.

Por tudo isto, Passos nem se acha – e ainda menos se olha – como estando acrisolado num casulo. Vai a meio da viagem. Quem o achar “isto” ou “aquilo”, que o combata no PSD e lhe ganhe. Sub-entendido: e que vença depois as eleições.

Imperturbável, fleumático, solitário, com alguma cansada ironia, resiliente e resistente (não é a mesma coisa) está bem armado para a vida, comporte ela vitórias ou derrotas. Já provou as duas. É o suficiente? Já o foi, talvez volte (ou não volte?) a sê-lo, a política não se compadece com certezas antecipadas,

Em resumo: uma agenda oposicionista de altíssimo risco, um caminho armadilhado pelo próprio Passos Coelho, olhados ambos, – agenda e caminho – com pasmo. Até no ressentimento ou no desprezo altivo com que é interpelado no parlamento se escondem muitos gramas de pasmo: a escolha da rota confunde companheiros, adversários, amigos e até inimigos. Um caso que certamente não nos desinteressará até ao seu desfecho.

Agora percorre o país (autárquicas oblige), não se sabe se com mais paciência que gosto, mas isso nunca se saberá, é demasiado reservado para isso e o hábito do dever pesaria sempre mais que uma súbita preguiça ou um inesperado entorpecimento.

O que se sabe é que não mudará. Não lhe dará jeito fazê-lo, valha isso o que valer na sua vida política e na do PSD. Mas que tudo isto, que é quase um mistério, encerra um tremendo “enjeu”, é verdade. A menos que a ironia cansada seja pela primeiríssima vez a exposição de um estado de alma, que não seria senão um sinal .

E nesse caso… Nesse caso a história teria de ser contada de outra maneira.