Qualquer bom narcísico sabe, quando o tratamento que recomenda não funciona, a culpa é do doente. É um mau doente. Quando o Governo propõe medidas inconstantes, conflituantes, avulsas, discriminatórias, e não se consegue conter a propagação de um vírus, a responsabilidade não é política, não lhe cabe, é de quem incumpre. Nesta pandemia expiatória, depois dos velhos incumpridores, surgem os novos infractores. Os jovens.
E qualquer um de nós sabe, os jovens são seres ainda em construção neuroanatómica. Apresentam pouca maturidade, baixa tolerância à frustração e dificuldade em avaliar situações de risco — com a consequente tomada de decisões. Têm de ser limitados e controlados. Acabam-se as festas, fecha-se a rua, e os centros comerciais, devolvem-se os irresponsáveis às suas casas. Um pormenor neuroanatómico: aos jovens, o que falta em avaliação e julgamento crítico, sobra em criatividade: fecha-se a rua, abre-se a garagem, a cave do primo, o armazém do amigo, o terraço da avó. Num instante a palavra passa, a casa enche-se, primeiro a medo, a seguir livre de adereços sai a máscara, vem o abraço, o beijo, a dança numa cerveja e logo, o quê, tu ainda estás de máscara? Achas que alguém aqui está doente?! Vai-se o medo da doença, vem o medo da rejeição. Aconteceu com o HIV.
E a experiência popular sabe, “quem anda à chuva, molha-se”. O comboio cheio. O metro cheio. O autocarro cheio. Azambuja. Loures. Amadora-Sintra. Polos fabris. E os arredores e dormitórios sempre em trânsito. Cheios. Dos que não têm alternativa. Dos que têm de trabalhar presencialmente. Dos que têm de cumprir horários inflexíveis. Vêm todos juntos, misturam-se e transpiram nas pegas dos transporte, e atropelam-se para entrar na carruagem já cheia. Autocolantes nas plataformas e vozes nos altifalantes: mantenha a distância social. Dir-se-ia que são surdos não fora os transportes, já de si insuficientes, em tempo de pandemia, terem estado a funcionar a 50%. Enfim, é para os mesmos que partilham duas assoalhadas entre quatro adultos e três crianças. Ou um quarto para seis em três beliches, à espera de documentação (enquanto escrevo, sai a notícia de que os transportes na grande Lisboa passarão para 90%… Vai ficar tudo bem. Arco-íris.).
Lisboa é saudável, segura, limpa. Algumas freguesias não. Lisboa de classe média-alta e confortável, Lisboa turística de postal, Lisboa de marca, diferenciada, Lisboa de bons hábitos e bons costumes. Algumas freguesias, não. É outro tipo de pessoas, facilitam… reutilizam a máscara, comem pior e têm doenças de base. Há 10 milhões de euros para investir em bairros saudáveis: a nova sopa dos pobres. Esta dicotomia levanta acrílicos para cercas sanitárias na consciência colectiva. Uns são bons, outros espalham doenças. É preciso localizá-los, identificá-los, fechá-los. Nós e os outros. Assim se fez o casal ventoso, os volumosos bairros sociais, assim se faz a impossível integração. Para as periferias, efectivas ou valorativas, de raça ou de credo, não são precisos avisos de distanciamento social. Afastamo-nos.
E o que já não sabemos, não nos lembramos, é que representar é fazer presente. Seria preciso que aqueles que elegemos nos representassem. Seria preciso reformar o sistema eleitoral por círculos uninominais: tornar presentes os interesses da comunidade, os nossos interesses, ter a quem pedir responsabilidades. Talvez a distância entre políticos e cidadãos se reduzisse. Talvez nos encontrássemos nos transportes públicos. Talvez a política se socializasse e diminuísse a abstenção. Talvez, como disse Ramalho Eanes, esta outra epidemia, a da “corrupção que grassa na sociedade portuguesa”, fosse contida.