Os últimos anos não nos têm dado descanso. Os problemas internacionais que se começaram a desenhar há duas ou três décadas desatarem a manifestar-se todos ao mesmo tempo. Mas enquanto o Ocidente parece mergulhado numa crise sem precedentes e nem sabe para onde se virar, noutras geografias vai havendo reorganizações pelas quais dávamos pouco ou nada e parecem estar de boa saúde (e recomendar-se). É o caso do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que passaram com distinção a sua décima cimeira anual, que teve lugar de 25 a 27 de julho, em Joanesburgo.

Porque é que apesar de desafios ainda a enfrentar e com alguns dos países membros com as economias presas por arames e graves crises internas e, principalmente, apesar de conflitos latentes entre os seus membros, os BRICS, dez anos depois de terem deixado de ser um acrónimo inventado pela Goldman Sachs para passar a ser uma organização, têm conseguido progredir com sucesso considerável? Quatro razões essenciais explicam este fenómeno: o grupo tem uma liderança forte, tem uma narrativa e um conjunto de valores que serve a todos, tem um objectivo comum e, no cálculo custo-beneficio, todos têm sentido que têm tido bastante a ganhar. Os ingredientes necessários para o bom funcionamento de uma organização de estados soberanos.

A líder dos BRICS é, evidentemente, a China. E, quer se queira quer não, Pequim ainda não chegou ao patamar americano em posição hierárquica no sistema internacional, mas já se senta confortavelmente no segundo lugar do pódio. A história diz-nos que uma aliança assimétrica – Pequim tem muito mais poder que os quatro restantes estados – tende a ter resultados positivos. O líder consegue projectar o seu poder com maior legitimidade, escreve as regras do jogo consoante os seus interesses, e se conseguirem acomodar os interesses dos outros membros, tem a capacidade de influenciar o mundo da maneira que lhes aprouver. Tem sido o caso.

Ora a China tem uma grande estratégia, hoje facilmente identificável, de transformar o mundo através do domínio comercial. A narrativa dos BRCIS começou por ser uma narrativa de virtude e de vitimização – era composto por estados que tinham enriquecido por seu próprio mérito, sem recorrer aos métodos invasores e exploradores como o Ocidente, e prometiam ascender pacificamente não se imiscuir em assuntos de estados alheios. E hoje, mantendo como pano de fundo estas mesmas ideias, propõem substituir Donald Trump e os EUA nas funções de ordenamento internacional já que este desistiu dessas funções (escrito com todas as letras na declaração final da Cimeira de Joanesburgo).

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Como líderes internacionais, os BRICS subscrevem a soberania como princípio fundamental do direito internacional público – mencionam várias vezes a Carta das Nações Unidas como documento fundador, o que excluiu todas as regras adotadas pela ONU nos anos 1990, aquelas em que o individuo tinha preponderância sobre o estado. O seu objectivo comum em relação ao mundo é criar “estabilidade e previsibilidade” (recorro outra vez à declaração final da cimeira). Dizem também que são agora os líderes da economia de mercado, através das organizações multilaterais, nomeadamente Organização Mundial do Comércio, que no passado tanto usaram para tentar travar os Estados Unidos e a Europa quer denunciando quer tentando travar infrações de regras que pensavam que os prejudicavam.

Ora este é mesmo o grande objectivo do BRCIS: transformar a ordem internacional de unipolar em multipolar. Não só por razões morais, porque acreditam que fariam melhor e mais justo do que os Estados Unidos e porque (na opinião, principalmente, da China) está na génese da organização e da história repor as grandes civilizações no centro do mundo, onde pertencem por direito. Mas também por razões políticas: os BRICS competem por poder, competem por um conjunto de valores diferentes dos ocidentais, e sabem que juntos têm mais força nesta reclamação do que seperados. Daí que todos beneficiem da organização: dá a cada um dos estados mais força internacional e mais prestígio (portanto, mais poder) nas suas áreas de influência regional.

Não, não estou a dizer que e tudo um mar de rosas e que a robustez da organização é à prova de bala. Não é. Mas apesar dos evidentes problemas já mencionados acima – questões de instabilidade interna de alguns dos seus membros, inimizades históricas e disputas territoriais por resolver – os BRICS são agora uma organização respeitada e modelar para muitos estados na Ásia e, principalmente, em África (estiveram em Joanesburgo oito chefes de governos africanos). Criaram com sucesso o Novo Banco de Desenvolvimento que conta, desde a primeira hora, com financiamentos europeus (entre outos estados). Têm usado a plataforma para se colocar na vanguarda tecnológica, em temas tão complexos como a inteligência artificial. Só estes três elementos fazem a diferença.

Parece-me que o verdadeiro segredo do sucesso dos BRICS e uma mistura de projeção no mundo de um quadro normativo simples com o qual quase todos os países podem concordar – estabilidade, previsibilidade e economia de mercado – ao mesmo tempo que ignoram as diferenças (de tipo de regime) e quando e necessário põem para trás da costas diferendos entre si (como as disputas na fronteira dos Himalaias que foram alvo de tréguas entre a China e a Índia o ano passado para não atrapalhar da cimeira anual). Faz lembrar o Concerto da Europa no século XIX. Que manteve a paz no continente durante cerca de 100 anos apesar das diferenças de regime entre seus membros, que não eram “amigos internacionais” nem procuravam ser, e apesar dos tumultos internos de quase todos os estados que mantinham o continente na ordem. Esta comparação pode fazer levantar sobrancelhas. Mas parece-me a mais adequada em tempos que correm, em que todos os modelos pós-Viena parecem estar em crise. Alguns sem garantia nenhuma que se voltar a ter a importância que tiveram no passado.