Pedro lembra com saudade o laboratório de fotografia que existia na Universidade onde estudou. Tem nos braços a primeira filha, nascida há um mês. O laboratório funcionava numa garagem e ficava aberto toda a noite. Conta como começou, recordando os três amigos que o ajudaram a pô-lo em funcionamento. “Insistimos tanto que lá nos arranjaram uma sala.” Depois disso, foi servindo várias gerações, mantendo-se ao longo de alguns anos sem que ninguém se preocupasse muito com o que lá se passava. Havia apenas que levar os químicos de revelação e o papel. Vinha-se de longe. Não havia horário, nem grandes regras. Aprendia-se por imitação, perdiam-se horas de sono. Mais tarde, foi deixando de haver amadores. Pedro guarda ainda uma cópia da chave do laboratório. Nunca mais fotografou.

Atravessando a passadeira, dois velhos cabo-verdianos cambaleantes. Vêm de uma horta num terreno acolá, atrás de um parque de estacionamento municipal onde costumava haver uma quinta. Vinham com todo o tempo do mundo, caídos de bêbados ao entardecer, obstruindo uma passadeira sensível para o fluxo da localidade. Um condutor sem sentido de humor buzinou para que se despachassem. Barafustaram uns com os outros. A horta escondida situa-se dentro da jurisdição da autarquia, sem que ninguém saiba bem onde fica. Os velhos não vêm de longe. Pulam um muro, furam um canavial, saltam um ribeiro. Há duas espreguiçadeiras improvisadas com paletes e peças de sucata, onde os amigos se esticam ao sol, regalados com couves galegas e feijoeiros, matando horas. A um deles acaba de nascer a primeira neta. Foram brindar para a horta com pacotes de vinho. Terminado o dia, regressam à cidade vindos doutro ritmo, ainda que não tenham chegado a sair dela.

Todas as terças-feiras e domingos, sem sair do concelho onde reside, Nélson demora cerca duas horas a chegar perto da Sé, para assistir à missa na Igreja de Santo António, de que é devoto. Residente num bairro clandestino na periferia, comenta, ao subir o Chiado, que a baixa lisboeta lhe parece “hostil”. Não se refere aos turistas, aos tuk-tuks, ou à descaracterização do espaço, nem às obras sem fim. Sente-se antes oprimido pela arquitectura pombalina que fui aprendendo a estimar, e cujo sentido de hospitalidade não costumamos questionar. Sente-se um forasteiro. “O meu centro não é aqui”. Fala no “meu Santo António” aludindo às viagens semanais de metro e autocarro para chegar à Igreja, onde conhece pelo nome cada paroquiana sexagenária, a quem oferece prendinhas no Natal. Tem vinte e oito anos. “Está na hora de ser pai”, considera, com um sorriso de miúdo.

Dentro da cidade e das instituições há muitas vezes um talhão de terra ou uma sala que não importam a ninguém salvo a dois ou três amigos. Espaços sem dono, sendo de todos e, ao longo de anos, uma forma para a alegria. São ângulos mortos. Enquanto duram, acolhem conversas, sonhos, bebedeiras, orações. Um dia, dando alguém por eles, são fechados, regulamentam-se, desaparecem, ou ficam esquecidos, acabando com porventura os melhores anos da vida de três, seis, dez, vinte pessoas. Milagre para que foi preciso uma sala dos fundos, um lugar vago, não reclamado, quatro paredes, algum calor, e que alguém se esquecesse da sua feliz função temporária. E para que outros milagres sucedam, talvez seja preciso também que desapareçam, dando lugar a nada ou a outra coisa qualquer.

Lembra a ideia do fotógrafo italiano Guido Guidi sobre as margens das nossas cidades: quanto mais longe da Virgem e do Menino, e mais perto das pontas das asas do arcanjos, mais longe do poder. Calcorreando Itália, Guidi tem o dom de deparar essas margens e interstícios também no coração dos grandes centros, e não apenas nas periferias, ensinando-nos a estar atentos a salas obscuras, a talhões de terra, à justificação das risadas de dois ou três amigos (que entretanto ou nunca mais se viram, ou se casaram, ou envelheceram, ou morreram), e ao desconforto de pessoas que passamos a saber como se chamam. Em que ângulo exíguo do espaço público somos felizes e nos sentimos em casa? parece perguntar-nos, questão recalcitrante que me ocorre ao reparar em como Nélson aperta os botões do casaco, subindo o Chiado, como para se proteger. Muitas vezes tal ângulo é um perímetro definido por quatro paredes, ou quatro cordas presas a quatro canas, ou as quatro linhas de um campo de futebol improvisado num baldio: um quadrado desejado que nos faz esquecer o tempo que nos leva a chegar a ele, e que destoa das memórias informes a que dará lugar até ser engolido e a cidade mudar — e nós mudarmos.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse Cabelo (Teorema, 2015).

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