Alguns comentadores tem deixado uma nota de preocupação por, em Portugal, os funcionários públicos auferirem remunerações monetárias mais elevadas que os trabalhadores do sector privado com responsabilidades equivalentes. Para além do nosso país é raro encontrar este fenómeno noutras nações, exceptuando a Coreia do Norte, Venezuela e Cuba.

Nota-se que, tendo os trabalhadores do Estado maior estabilidade no vínculo laboral deviam ter, em principio, salários mais baixos. De facto, não é só no mundo das finanças que se aplica o princípio “maior risco, maior remuneração”; é humanamente razoável, teoricamente expectável, e empiricamente verificável que esta relação opera também em mercados laborais competitivos.

O risco que um trabalhador tem num posto de trabalho tem vários componentes: não há só risco de acidentes laborais, mas também há risco de o contrato de trabalho ser quebrado, terminado, ou de outro modo deixar de ser operante. De facto, porque os riscos laborais são muito mais difíceis de serem minorados, através da sua diversificação, que os riscos financeiros, a relação “risco-remuneração” tem condições para ser mais forte nos mercados laborais que nos financeiros. Ceteris paribus, porque há de querer alguém trabalhar pelo mesmo salário num sito que tem mais risco de acidente ou despedimento?

Um exemplo deste fenómeno que recebeu alguma publicidade há alguns anos atrás foi de operários de empresas petrolíferas americanas conseguirem salários no Iraque múltiplos dos que recebiam no Texas: a diferença estava toda no risco, nenhuma na produtividade. O facto de no Estado haver maior remuneração que no sector privado, onde o risco de instabilidade laboral é maior, mesmo assumindo que a produtividade é semelhante, é pois apontado como uma das evidências de que há uma anomalia e de que o mercado laboral em Portugal é disfuncional.

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Mas esta visão provavelmente não é correcta. É possível que ignore outros factores (para além de horário de trabalho, qualificação, produtividade, responsabilidade e risco) que influenciem o salário requerido pelos trabalhadores. Pode ser que haja algo especialmente doloroso ou desagradável em se trabalhar para o Estado em Portugal, algo ainda não identificado na literatura económica, que explique a razão de este ter de pagar aos seus funcionários um salário superior para os atrair e reter. Mas se a literatura económica é omissa, os clássicos chineses podem dar uma pista para esta anomalia. Zhuangzi 荘子 (c.369—286 aC) nos seus Volumes Miscelâneos 雜篇, 24-11, relata o seguinte episódio:

«Mestre Qi tinha oito filhos. Um dia alinhou-os, chamou Jiu Fang Yin, o fisionomista, e disse-lhe: “Estuda as caras deles e diz-me qual será afortunado.” Depois de as inspeccionar Jiu Fang Yin declarou: “Kun é o afortunado.” Mestre Qi ficou agradado e surpreso. Perguntou: “De que modo será ele feliz?” O fisionomista respondeu: “Kun comerá carne e beberá vinho, pelo resto dos seus dias, à custa do governo.”

Mestre Qi começou então a chorar e a lamentar-se: “Meu pobre filho! Pobre criança! Que fizeste tu para merecer tal infortúnio?” “O quê?” perguntou o fisionomista, “quando alguém partilha das refeições del Rei, essa bênção espalha-se por toda sua a família, especialmente pelo seu Pai e Mãe! Porque recusas a tua boa fortuna?”

Mestre Qi replicou: “Amigo Yin, o que faz esta fortuna boa para Kun? Carne e vinho são para a boca e barriga. Estará a boa fortuna só na boca e barriga? Como será que ele partilhará dessas ‘refeições del Rei’? […] Não tenho outro desejo para mim nem para meus filhos, que o de poder deambular livremente pelas esferas da terra e do céu. Não procuro outra alegria para eles nem para mim que a felicidade sincera do céu e os frutos simples da terra. Não diligencio vantagens nem negócios. Apenas quero buscar com os meus filhos a virtude perfeita que está em harmonia com o céu e com a terra, e em não nos deixar perturbar pelo que é exterior e aparente. Procuro com eles cultivar a indiferença pelo transitório e evitar o que é materialmente proveitoso. E, agora, recebemos esta recompensa grosseira! Para uma causa estranha tem de haver um efeito estranho. Nem eu nem eles fizemos algo para merecer este castigo imerecido, e no entanto o céu envia-nos esta pena. Portanto choro!”

E aconteceu que um dia Mestre Qi enviou o seu filho Kun numa viagem a Yan. O jovem foi capturado por uns bandidos que decidiram vendê-lo como escravo. Acreditando que conseguiriam obter melhor preço caso ele não pudesse fugir, cortaram-lhe um pé. Venderam-no manco ao governo do Estado de Qi que o pôs responsável pela cobrança das portagens das estradas reais. Assim ele comeu carne e bebeu vinho pelo resto da sua vida à custa do governo.»

Terá sido feliz?

Professor de Finanças, AESE Business School