Mesmo para quem tem a sua raiz no ensaio e na poesia, a ficção tem dias salvíficos, até a ficção de ecrã, seja a partir de Tolkien ou R.R. Martin. E de certeza absoluta a de Houellebeq. E ele próprio também sabe disto, não por ser escritor, mas por ser leitor, afinal, que faz Paul Raison, em Anéantir, para sobreviver à duração das horas de quimioterapia? Lê. Para ser outra pessoa, noutra vida, noutro lugar.

O Primeiro Ministro português num gesto de grandeza anacrónica apresentou o pacote de medidas «Famílias Primeiro», depois de outros países o fazerem, ou de estarem já a apresentar segundas ou terceiras intervenções para apoiar as famílias na perda do poder de compra, a conter a inflação, porém, e ao que parece, chegou quando ele disse que chegaria e, a nós, isso deveria chegar-nos também – não chega: os contribuintes, raça de ingratos, pagadores contrariados, donos deste dinheiro que o executivo gere e redistribui, querem mais e sabem que podem tê-lo sem aumentar a dívida pública.

A tarifa regulada, onde e como, entrou nas conversas de café por junto com os malabarismos percentuais das facturas de electricidade e a incredulidade ante a desfaçatez da subtração das pensões. É ilegal? Mude-se a lei e está resolvido. Combustíveis? Transportes? Ande-se a pé e trate-se da saúde cardio-vascular enquanto se poupa no orçamento mensal.

Na HBO estreou House of The Dragon. Na Amazon The Rings of Power. Ainda bem. Temos uma dose dupla de fantasia para adormecimentos variados e necessários, a saber, e para além do adormecimento da realidade, o da pós-verdade: Gorbatchov foi um traidor; a culpa dos aumentos no preço da energia é das sanções impostas à Rússia. Do outro lado do Atlântico, a partir da Cidade do Kansas, não sei se por efeito de eco, se de coro, mas em perfeita simetria com Jerónimo de Sousa, Roger Waters, numa carta aberta a Olena Zelenska, pede à Ucrânia que se renda, ceda os territórios, e deixe de estar ao serviço dos interesses anti-democráticos e totalitários da extrema-direita que conduziram à guerra. Haja streaming para isto tudo.

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O 200º dia de guerra aproxima-se. Em duzentos dias teve de se olhar para o que já se sabia existir, mas se tinha a liberdade de não ver. Pelo menos até 24 de Fevereiro teve-se. A decadência europeia. A Europa desinvestiu na sua própria defesa. Desinvestiu na sua própria indústria e na sua base, a energia, que passou a ser maioritariamente russa – o gás é mais limpo do que o carvão, menos controverso do que o nuclear e mais barato do que as renováveis. Desinvestiu na democracia. Desinvestiu na sua força política e económica. E, por fim, desinvestiu na sua cultura quando a entregou à esquerda. Desinvestir favorece a entropia.

O nosso passado ilude-nos: o ocidente é uma civilização em queda. A Europa vai à frente. Quem nos parará?

Para sobreviver a uma crise profunda é preciso dar significado ao sofrimento, à dor, às perdas, no curto prazo, e intervir para conter os danos e imprimir uma direcção ao futuro, inventar o futuro, ou abrir-se-á o tempo a convulsões imprevisíveis no longo prazo. Não foi isto o que aconteceu durante a Segunda Grande Guerra e mesmo durante a Guerra Fria? Foi claro, então, o alinhamento. Os valores à cabeça de um e de outro lados. Porque é diferente agora? Não estamos a viver duas guerras, uma económica e outra por proxy, onde a frente é ucraniana, e estes valores se jogam e com eles as vidas e um modo de vida?

Amanhã, todos o percebemos, o BCE anunciará a subida das taxas de juro a pretexto da contenção da inflação. Quem beneficia? A moeda?

No Reino Unido, a cada dia, a presença da rainha, o garante da estabilidade, é mais rarefeita. Liz Truss continua na senda de polarização dentro do seu próprio partido, adivinha-se, portanto, o futuro sem recurso a qualquer bola de cristal, ou melhor, palantir já que a antevisão é feita a partir do passado – as pedras usadas no Pequeno Conselho não se prestam à visão bidirecional do tempo, servem de relógio de ponto, nada mais… enfim, são as diferenças entre a Terra Média e Westeros.

Façamos uma hora de pausa para um sono de ficção. Quando acordarmos, a realidade será, porque a poesia tem boca de Cassandra, como no verso de Yeats: Violence upon the roads: violence of horses, o tempo em que as coisas más só dão lugar a coisas piores.

A autora escreve segundo a antiga ortografia