Consta que ‘anticonstitucionalissimamente’ é a mais extensa palavra da língua portuguesa e, por uma feliz coincidência, vem muito a propósito de dois excelentes artigos da edição do Público de 9 de Junho passado.

Ambos são textos magistrais: “Os juízes não têm direito à greve” é assinado pelo constitucionalista Jorge Miranda, ‘pai’ da Constituição da República portuguesa; e a “Carta aberta aos senhores deputados” é subscrita por um grupo de prestigiados juristas, como os professores Germano Marques da Silva, Paulo Otero, Francisco Mendes Correia, Diogo da Costa Gonçalves, Paulo Pulido Adragão, Sofia Galvão, etc.

Antes de entrar na matéria versada nestes dois textos, vale a pena chamar a atenção para o seu carácter científico: são, certamente, artigos de opinião sobre matérias em debate público, como é o alegado direito à greve pelos juízes, bem como a eventual descriminalização do homicídio a pedido da vítima e do incitamento ou ajuda ao suicídio (Arts. 134º e 135º do Código Penal, respectivamente), isto é, a eutanásia. Mas, muito embora o seu teor seja de natureza política, como são as causas fracturantes, estes dois pareceres são estrictamente jurídicos, ou seja científicos, efectuados na base dos princípios e métodos próprios da ciência do Direito, segundo a Constituição da República portuguesa, carta magna do Estado de Direito e da sociedade democrática.

Infelizmente, talvez por falta de preparação jurídica dos deputados, o parlamento muitas vezes limita-se a verter, em termos jurídicos, os desideratos da vontade popular, à margem das exigências constitucionais – a despenalização do aborto contradiz o direito constitucional à vida – e ferindo a coerência do ordenamento jurídico. Com efeito, pela introdução abusiva de normas avulsas que contrariam os princípios constitucionais e contradizem a natureza própria dos institutos legais, não só se compromete a coerência do Direito vigente como a sua cientificidade. É o caso, por exemplo, do casamento de pessoas entre as quais não se pode estabelecer a conjugalidade que está na origem do matrimónio e da geração, não por razão confessional ou cultural, mas biológica e natural. Ou o alargamento da adopção a uniões que, não sendo equivalentes à conjugal, não podem ser equiparadas à família natural, por mais que se pretenda dissolver as noções básicas de paternidade e maternidade no ambíguo conceito de parentalidade, muito do agrado da emergente ideologia de género, mas que não tem qualquer fundamento natural ou científico.

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A lei, mais do que vontade, deve ser razão. Pode-se e deve-se admitir a transcendência da vontade popular, democraticamente expressa, na escolha dos governantes e até dos membros da câmara legislativa; mas é óbvio que a lei, mesmo respeitando a vontade da maioria, deve estar adequada ao que é justo e, nesse sentido, é sobretudo razão. Por isso, uma lei injusta não é lei: tese tomista que, por ironia do destino, já vi a encabeçar uma manifestação de furiosos trabalhadores afectos a uma central sindical comunista… A escravatura nunca poderá ser legítima, como também o não poderá ser a morte de seres humanos inocentes, mesmo que, por absurdo, tais medidas possam ser referendadas pela esmagadora maioria dos cidadãos. O direito à vida, como direito da personalidade, é indisponível e irrenunciável, também para o próprio titular.

O professor Jorge Miranda não só prova a improcedência, per se, de um eventual direito à greve por parte de titulares de órgãos de soberania ou dos servidores do Estado cujas funções não permitem o recurso a uma medida que, noutras circunstâncias e para outros trabalhadores, é um inegável direito laboral, como também conclui pela sua eventual inconstitucionalidade: “Mas, porque nenhum preceito constitucional exclui a greve por parte dos juízes, não poderiam eles invocar esse direito em nome do princípio da liberdade? Ou, doutra óptica, não poderia a lei ordinária consigná-lo como verdadeiro direito constitucional ao abrigo da cláusula aberta do Art. 16º, nº 1?”. Responde o constitucionalista: “Não, o princípio da liberdade vale para as pessoas enquanto particulares ou enquanto membros da comunidade; não para os titulares dos órgãos do poder. E uma lei que concedesse aos juízes o direito à greve seria – justamente por causa disso – inconstitucional”.

Também os juristas que subscrevem a citada “Carta aberta aos senhores deputados” alertam para o perigo de derrocada de todo o sistema jurídico-constitucional se se descriminalizarem “condutas intencionalmente dirigidas a causar a morte de inocentes”. Talvez algum jovem e inconsciente parlamentar pense que, afinal, se trata apenas de mais uma lei, de uma simples medida cirúrgica a introduzir no sistema jurídico português e, por isso, não há razões para alarmismos, até porque será sempre uma opção que só se facultará a quem a desejar. Desenganem-se os ingénuos pois, como advertem os subscritores da carta aberta, “é abrir as comportas de um dique […]. Por mais pequena que seja a brecha inicial, fica posta em causa a sustentação do ordenamento jurídico português, e a razão de ser do próprio Estado”.