Não há nenhum bom político que não tenha um bom inimigo. Quando um dia corre mal, quando uma medida corre muito mal ou quando uma entrevista corre terrivelmente mal, convém ter alguém que se possa culpar de forma imediata, eficaz e indolor. No pouco imaginativo caso de António Costa, o inimigo escolhido são os “comentadores políticos”. Segundo ele e os seus conselheiros, os “comentadores políticos” são uma espécie exótica que habita na etérea “bolha mediática”, mergulhados num desprezível privilégio e desatentos da realidade do bom “povo”. Não sabem o que verdadeiramente preocupa os eleitores e, como consequência, não devem ser ouvidos pelos eleitores.

Por estes dias, o guru da comunicação de António Costa, Luís Paixão Martins, decretou que os “comentadores políticos” pertencem ao “grupo dos 10%”. No seu livro mais recente, Como Mentem as Sondagens, conta que, no momento mais embaraçoso do caso TAP, quando as revelações prejudiciais para o primeiro-ministro se sucediam na comissão parlamentar de inquérito, estudos de opinião encomendados pelo PS indicavam que apenas 12% dos inquiridos afirmavam que a companhia aérea era um problema. Enquanto os telejornais dos canais generalistas (vistos pelo “povo”) perdiam audiência, os canais de informação (vistos pelo “grupo dos 10%”) ganhavam. Como estes canais de notícias são feitos para “um grupo minoritário” que se resume a “jornalistas, políticos, assessores, consultores, comunicadores, comentadores e analistas”, a conclusão é óbvia e tranquilizadora para António Costa: a acreditar em tudo isto, a TAP apenas preocupou o “grupo dos 10%”.

Mesmo tratando-se de uma minúscula e irrelevante agremiação, esta semana António Costa decidiu falar ao “grupo dos 10%”. O primeiro-ministro deu uma entrevista à TVI e depois prolongou-a na CNN, onde se encontra o tal “grupo minoritário”. Aconteceu-lhe, porém, um azar: é que, de repente, sem perceber muito bem como, António Costa encontrou pela frente uma integrante do “grupo dos 89%”. Esta última congregação é aquela que vive fora da “bolha político mediática” de que fala Luís Paixão Martins. É constituída por pessoas a quem faltam comboios para circular entre as cidades e as periferias, a quem faltam barcos para atravessar da margem sul para Lisboa, a quem faltam médicos para terem consultas, a quem faltam professores para ensinarem os filhos — são, genericamente, como diz a frase célebre, pessoas a quem a única coisa que sobra é mês no final do dinheiro.

Foi uma dessas pessoas que se levantou para fazer uma pergunta a António Costa. Luís Paixão Martins tinha razão: a pergunta da enfermeira Arminda de Jesus Branco Morais, de 63 anos, não foi sobre a TAP — foi sobre a rede de cuidados continuados domiciliários para idosos. Ou melhor: foi sobre a inexistência de uma rede de cuidados continuados domiciliários para idosos. António Costa não percebeu imediatamente o que estava a acontecer. O primeiro-ministro respondeu a esta integrante do “grupo dos 89%” como se estivesse a conversar descontraidamente com um dos seus conhecidos do “grupo dos 10%”. Assegurou-lhe, com um sorriso confiante, que está tudo “pensado”; e jurou-lhe, com um olhar rutilante, que o santo PRR tem “um conjunto de verbas significativas” que permitirão, claro está, “um investimento muito significativo”.

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Foi aqui que tudo começou a correr terrivelmente mal para António Costa. É que o “grupo dos 89%” não se deixa impressionar pela linguagem utilizada habitualmente para adormecer a “bolha político mediática” que se acantona no “grupo dos 10%”. Por isso, ao ouvir as promessas e garantias do primeiro-ministro, a enfermeira Arminda de Jesus Branco Morais começou a fazer perguntas simples e difíceis, que deixaram António Costa primeiro baralhado e depois descoroçoado:
— Mas isso é para quando?
— Já está a ser.
— Mas não funciona.
— Desculpe?
— Não funciona.
— Vai funcionando.
— “Vai funcionando.” OK…

No final deste diálogo, ficou claro que António Costa não pertence ao “grupo dos 89%” — onde se encontra a enfermeira Arminda de Jesus Branco Morais; nem pertence ao “grupo dos 10%” — onde se encontram os “comentadores políticos”. Tragicamente para nós, António Costa pertence ao grupo que sobra quando ao total se retira o dos 89% e o dos 10%: o primeiro-ministro faz parte do “grupo dos 1%”. É o grupo que não tem problemas nem vê problemas; não tem dificuldades, nem vê dificuldades; não enfrenta obstáculos, nem vê os obstáculos que os outros têm de enfrentar. É o grupo que vive numa microbolha: desde 1983, quando tinha 22 anos, António Costa passou da Assembleia Municipal de Lisboa para o Parlamento, depois para uma secretaria de Estado, a seguir para um Ministério, regressou à Assembleia da República, avançou para o Parlamento Europeu, voltou a ser ministro, saltou para a Câmara de Lisboa e, finalmente, avançou, imparável, para São Bento.

Na entrevista à CNN, o “grupo dos 1%” foi falar para o “grupo dos 10%” e chocou de frente com o “grupo dos 89%”. Confrontado com preocupações inesperadas, o representante do “grupo dos 1%” apresentou a representante do “grupo dos 89%” o país do “Vai funcionando”. Como se percebeu, o resultado não foi o esperado. Dentro da “bolha”, as coisas vão sempre “funcionando”; fora da “bolha”, as coisas já deixaram de funcionar há muito, muito tempo.