António Costa revelou a sua Agenda para a Década, e foi uma alegria entre o jornalismo de esquerda. Aplausos, simpatia, adesão. Sinceramente, não percebo. É verdade: a Agenda condena muitas vezes a “austeridade”. Mas Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix também. O texto de Costa não é um texto de esquerda. É um texto de oposição. Não pode, por isso, ser lido separadamente do Orçamento da Câmara de Lisboa. E o que está aí? Impostos, cortes, privatizações – a austeridade que a Agenda condena. É então Costa de direita quando está à varanda do município? Não. Não há um Costa de esquerda e um Costa de direita. Há um Costa na oposição e um Costa no governo (municipal).

Isto é o PS, dirão alguns. Não, não é o PS. Ou não é só o PS. São todos os partidos. O PCP também é uma coisa no parlamento, e outra na Câmara de Loures, onde Bernardino Soares poupa e corta. Mas o próprio PSD também foi outra coisa na oposição ao último governo socialista, durante o desfile dos PECs entre 2010 e 2011: rejeitava então a “austeridade” (a não ser para as “gorduras” do Estado) e acreditava no “crescimento” como verdadeira solução. Porque o PSD era, há três anos, um partido de esquerda? Não, porque o PSD estava na oposição, sem os constrangimentos do governo.

Lembremos a evolução dos impostos directos per capita nos últimos dez anos: 1094 euros em 2001; 1096 em 2005; 1425 em 2011; 1665 em 2013 (recorde). Lembremos a  progressão da despesa social: 4,8 mil milhões de euros em 2001; 8,6 em 2005; 11,2 em 2011; 13,8 em 2013 (outro recorde). Onde está o “neo-liberalismo”, que, a crer na oposição, já “destruiu” o Estado social? Onde estão, na escalada consistente de despesas e de impostos durante quinze anos, as mudanças para a esquerda ou as viragens para a direita, que tanto entusiasmam ou afligem os editorialistas da nação? Os números não têm cores partidárias.

O governo do país está apertado numa prensa implacável, de que uma das peças é a falta de dinheiro, e outra os défices do Estado social. Nenhuma declaração de fé ideológica, só por si, chegará para aliviar a pressão. Contra a falta de dinheiro, nem o comunismo funcionou: em 1989, o muro de Berlim também caiu porque a Alemanha comunista estava à beira da insolvência e prestes a impor uma austeridade que, segundo os seus economistas, iria reduzir o nível de vida entre 25% a 30%. Contra a ascensão da “despesa social”, nem a lendária Margaret Thatcher foi totalmente efectiva: durante os seus governos, a despesa pública no Reino Unido subiu, em média, 1,1% ao ano — e só a grande expansão económica permitiu que diminuísse em termos do PIB. Não vale a pena esperar que alguém em Portugal invente o que ninguém inventou. Os nossos comunistas não são melhores do que os alemães de leste, nem os nosso liberais mais finos do que os ingleses. A falta de dinheiro traduz a falta de crédito de uma economia que não cresce e de uma sociedade a envelhecer. Os desequilíbrios do Estado social não são facilmente corrigíveis, quando, como o Dr. Medina Carreira observava há dias, 80% dos pensionistas recebem 1000 euros ou menos por mês, o que quer dizer que quaisquer reduções seriam imediatamente ressentidas.

Não estou a dizer que esquerda e direita desapareceram. Continuam a existir como polos filosóficos ou referências sentimentais. Mas a crise tirou-lhes relevância política. Sim, António Costa deve ser de esquerda. Depois de mais de trinta anos no Partido Socialista, não pode ser outra coisa. Mas esquerda e direita só fazem politicamente sentido quando há margem para opções, isto é, quando o risco de bancarrota ou de ruptura social não é suficientemente forte para obrigar liberais a aumentar impostos ou socialistas a vender património público (chamando-lhe, é verdade, “activos não estratégicos”).

No Portugal de hoje, já não há direita e esquerda, mas apenas governo e oposição, ou seja: de um lado, aqueles que, no governo, têm de se reger pelo dinheiro e pela despesa que há; e do outro, os que, na oposição, podem fingir que não tem de ser assim.

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