António Costa podia ter apenas saudado o aumento dos candidatos colocados no ensino superior público. Mas foi mais forte do que ele: teve de acrescentar que isso se devia exclusivamente à “morte” do “modelo da direita”. Infelizmente, as estatísticas não o ajudam. O número de colocados começou por cair entre 2010 e 2011. Culpa do “modelo da direita”? Mas era Sócrates quem estava no poder. Depois, o número subiu de 2014 para 2015. Mérito da “reversão das políticas de direita”? Mas era Passos Coelho quem governava. Porque é que António Costa não pode dizer as coisas simplesmente como elas são? Onde está a dificuldade?

A dificuldade está num dos grandes legados de Sócrates aos seus correligionários: a teoria da “narrativa”. O princípio da teoria é expedito: não há factos partilháveis entre adversários políticos, não há informação independente dos interesses de cada um; cada partido pode e deve construir a sua própria “realidade”, sob pena de viver na realidade imposta pelo seu adversário. Com isto, Sócrates não estava a aludir à habitual disputa de interpretação das estatísticas, mas a outra coisa muito mais radical: à possibilidade e à conveniência de engendrar grandes ficções, recusando qualquer terreno comum de dados com os adversários. Passou a ser a regra entre os seus sucessores. Vimo-los assim insistir que em 2011 o país estava óptimo e as dificuldades só começaram quando a “direita radical” assaltou o poder. Vemo-los agora, que Costa governa, repisar que todos os problemas do país estão resolvidos, menos aqueles que Schauble, por pura maldade, não deixa resolver.

A “narrativa”, para aqueles que pretendem passar por gente de esquerda, tornou-se uma questão de identidade. Quem não repetir a “narrativa”, não é do PS, não é de esquerda, ou está a ceder, por debilidade ou inconsciência, a uma coisa que se chama “ideologia da direita”, e que corresponde mais ou menos a toda a informação que não condiz com os interesses de António Costa e dos seus aliados.

Nada disto, porém, poderia funcionar sem outro legado socrático no PS: a adopção da visão demoníaca que o PCP e o BE têm daquilo que chamam a “direita”, e que frequentemente no passado incluiu o próprio PS. No mundo do PCP e do BE, o pluralismo não é normal. Por isso, é-lhes impossível conceber a direita como uma expressão legitima da diversidade de opiniões e de alternativas num regime livre. Pelo contrário, a direita pareceu-lhes sempre um caso de criminalidade odiosa, a justificar todas as exclusões e autos-de-fé. Sócrates promoveu esta mentalidade de guerra civil no PS, o que, em Novembro de 2015, ajudou a explicar a conjugação com o PCP e o BE: tudo era preferível à continuação do “governo da direita”, porque a direita, como todo o verdadeiro homem de esquerda sabe, é o mal absoluto. Esta negação do pluralismo tem também sido fundamental para a produção da “narrativa”, na medida em que é a caricatura satânica dos adversários que legitima a redução da discussão pública à propaganda e à contra-informação.

É este o ambiente em que António Costa só pode falar da diminuição ou do aumento do número de colocados no ensino superior do modo como falou. Como qualquer general em campanha, não lhe é permitido dizer nada que não seja abençoar os seus, ou demonizar o inimigo. Tudo o mais seria trair a causa, render-se à direita.

Dir-me-ão: mas esta “narrativa”, de tão patusca, não convence. Pois não: a manipulação, quando é demasiado evidente, nunca produziu convicção, mas sobretudo desconfiança e cinismo. Como poderia ser de outra maneira, se passa uma bicicleta, e o governo diz que foi um camião? Mas o poder, ao contrário do que por vezes se diz, nunca precisou de convicções: basta-lhe o conformismo.

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