1. Quando ouvi o Salvador Patrício Gouveia do outro lado do telemóvel “vai haver uma homenagem ao meu pai e eu gostava muito que estivesse”, dizer que me comovi não é suficiente. Nem exacto. Foi mais que isso, foi como se me estranhasse a mim mesma: o mundo virara-se para trás e subitamente vi-me noutro, tão distinto, tão longínquo que não podia fazer outra coisa senão isso mesmo, estranhar. E sim, comover-me, que foi também o que aconteceu.

A imensa surpresa – tudo ignorava daquela cerimónia — fora afinal menor do que o reencontro com esse mundo onde uns quantos como o pai do Salvador e eu própria julgaram ter encontrado o acerto entre nós próprios e quase tudo. Entre nós e nós, nós e as coisas, nós e a política. Entre nós e o país. Não que tivéssemos “certezas” –quem as tem? — tínhamos antes a energia de um “valer a pena” que nos norteava o caminho e os dias, sentíamos uma confiança pouco experimentada desde a revolução e os duríssimos combates que se lhe seguiram pela democracia. Tínhamos a vitalidade e o convencimento intactos. Acreditávamos. Talvez também porque após a tormenta, soubéssemos muito simplesmente o país bem entregue. E nós, com ele.

2. O pai do Salvador chamava-se António Patrício Gouveia e era um dos melhores artesãos desse mundo. Encarnava-o, de certa forma. Talvez devesse escrever também que o António era excepcional, incomum, inteligente, sério, senhor de alta qualidade intelectual. E decente, o que é dizer absolutamente tudo sobre alguém, mas gosto de lembrar que era um homem bom. O substantivo bondade que parece ter caído em desuso, provocará talvez descrença, sorrisos patetas, quem sabe entediará até leitores. Mas lembro-me de muito pouca gente e a vida vai-me longa, que tenha feito de si mesmo uma interpretação da bondade como instrumento de comando do resto: da inteligência, do relacionamento, da decisão, do modo como olhava (e atendia) o outro e os outros. Praticou este modus operandi em todas as facetas da sua vida — privada e pública — pessoal, familiar, social, política, e fazia-o com um sorriso que parecia estar desde sempre e para todo o sempre desenhado no seu rosto. Possuía uma vibrante alegria de viver que dispensava o alarido, um bom senso sereno, uma discrição natural que nunca lhe vetou o magnifico sentido de humor.

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