A História, com H grande, começou a acabar com a invenção do liberalismo, disse-se. O mercado e a mão invisível, a democracia e o império da lei, na opinião de Hegel (“a Europa é o fim da História Universal”) e, no final do século XX, de Francis Fukuyama, acabariam por triunfar de vez sobre todos os seus inimigos:

Historicismo, relativismo intelectual e, sobretudo, colectivismo, os “inimigos da sociedade aberta” descritos por Karl Popper na sua obra seminal A sociedade aberta e os seus Inimigos, teriam sido derrotados para sempre, ficando a democracia e o capitalismo como as traves mestres derradeiras e definitivas da sociedade humana.

Fascismo, nazismo, comunismo – todos os ismos tonitruantes dos últimos séculos -, como solução para os problemas da Humanidade estariam para sempre apagados da História, substituídos pelo gradualismo e engenharia social e pelo reformismo político.

Equilibrada, a espécie humana caminharia para um futuro de constante aperfeiçoamento social, em que as guerras, a tensão entre povos e nações, os antagonismos políticos deixariam de ter relevância, muito simplesmente porque não haveria protagonistas para antagonizar. Numa versão menos benévola, a tutela da única superpotência, os Estados Unidos da América, garantiria essa estabilidade – e a inexistência de antagonismos.

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A democracia e o mercado liberal ocidentais tinham assim triunfado como o destino final da Humanidade. Únicas némesis disponíveis, e ainda assim em rápido desvanecimento, o que restava do poder russo – sobretudo o seu arsenal nuclear – e as difusas ameaças do fundamentalismo islâmico e do nacionalismo arcaico residual. O fim da História. E, com ele, o fim do perigo, das ameaças, da extinção mutuamente assegurada.

Infelizmente, a História não acabou. E o Mundo sente de novo, com preocupação, com receio, os ventos turbulentos da ameaça. Os nacionalismos erguem a cabeça, orgulhosos, e gritam: estamos vivos. O fundamentalismo islâmico não cede, morde com pequenos dentes, ou com unhas ferinas, a carne tenra da doce ilusão ocidental. O urso russo acordou e exige o seu lugar – ou, talvez, busque retribuição.

Medo. O historiador Albrecht Koschorke, autor de uma leitura crítica actual do Mein Kampf, de Hitler, sublinhou numa entrevista ao Expresso que há hoje uma tendência para o neonacionalismo e a xenofobia em todo o mundo; mas o mais importante é o que nisso importa verdadeiramente, o sentimento de empoderamento que ambos asseguram aos mais desvalidos, aos que se sentem – ou são de facto – inferiores, aos que se sabem – e são de facto, como somos quase todos – impotentes, perante os poderes terrenos.

O mesmo se passa com os convertidos ao fanatismo islâmico, a quem um fuzil, ou uma bomba, nem que seja para que se expludam em público, se tornam toda a ideologia do mundo, o poder máximo a que podem aspirar e que os tornará maiores do que os maiores poderes sobre o planeta. Matar como forma de ideologia, de terem um poder que de outra forma nunca teriam, é aspiração de muitos desvalidos, que assim se juntam, de bom grado, às ideologias totalitárias, religiosas ou seculares, que com sucesso os tentam.

E depois há a Rússia. O seu porta-aviões singular, Almirante Kutznetsov, empalidece face aos doze super-porta-aviões norte-americanos. Mas os mísseis nucleares de curto alcance instalados em Kalinegrado, à porta de entrada da Europa de leste, assustam. As sanções ocidentais ferem a economia da federação iliberal de Putin. Mas os mísseis terra-ar S-400 russos instalados na Síria são um aviso sério às intenções americanas – e turcas, e europeias – de declarar zonas interditas ao voo (“no-fly”) no país. E crescem as suspeitas (não mais do que isso até prova cabal em contrário) de espionagem informática com políticos norte-americanos por alvo, de financiamento a partidos radicais no Ocidente, de favorecimento de líderes e candidatos nacionalistas e populistas na Europa e nos Estados Unidos.

A democracia em crise, mas também o capitalismo em crise. Os mercados liberais, o epitoma do capitalismo triunfante, ameaçam tornar-se cada vez menos liberais; crescem as barreiras, muros nascem do chão de medo do fim da História que, afinal, não acabou. O brexit, mais do que a doença, é um sintoma da doença: assustado, receoso das forças novas – afinal, tão antigas – que não compreende, o Ocidente recorre às mezinhas ancestrais e procura fechar-se atrás de portas aferrolhadas por sete chaves. O proteccionismo, mais do que a doença, é outro sintoma da doença. E a xenofobia, o medo do Outro, mais do que a doença, é outro sintoma da doença.

Brexit, proteccionismo, xenofobia, nacionalismo: um pouco por todo o Ocidente, vai crescendo um mal com nome e tradição, que estranhamente os ocidentais não reconhecem. Ou que preferem não reconhecer, assustados por ameaças novas que, por o serem, os assustam ainda mais. O rumor adensa-se, o mal-estar instala-se, a agitação avoluma-se, estado a estado, país a país, através de propostas políticas populistas, nacionalistas, reaccionárias.

Partidos e políticos propõem o abandono de acordos supranacionais, de alianças comerciais, de tradições liberais. O ano que vem, na Europa, é o ano de todos os perigos: eleições em França, eleições na Alemanha. O desencadear (finalmente?) do brexit. O eurocepticismo e a ameaça da desagregação da União Europeia. A pressão crescente sobre o leste, sobre os estados bálticos, sobre a Ucrânia. A interminável saga das rotas dos exilados do sul e oriente médio, em busca, sempre em busca, da terra do leite e do mel, a terra prometida da Europa que cada vez mais lhes oferece apenas baionetas e arame farpado.

Trump, nos Estados Unidos, caso vencesse, colocaria uma forte pressão sobre o sistema político norte-americano. Mas não o destruiria, resiliente como é na sua estrutura de poderosos freios e contrapesos democráticos. Mas Trump não precisa de vencer – e não vai vencer, já se sabe-, basta-lhe existir. É outro sintoma da doença. Como na Europa Orbán, ou o movimento 5 estrelas, ou Le Pen ou o partido dos finlandeses: sintomas da doença da democracia e da liberdade, do Fim do fim da História.

Mas qual é afinal a doença do Ocidente, perguntar-se-á o leitor decerto fatigado, e na justa medida, desta minha lenga-lenga pseudo-intelectual?

Muito simplesmente, o medo. Medo da mudança, de um mundo que já não é só seu e que não domina, medo do declínio demográfico, da ameaça dos estrangeiros, medo dos velhos fantasmas que, paradoxalmente, para melhor exorcizar, abraça. O Ocidente morre de medo.

Morrerá por isso mais depressa.