Um cronista que acompanho com interesse é o argelino Kamel Daoud na Le Point. Daoud não é um exemplo só porque é argelino, árabe, e um acérrimo crítico e adversário do fundamentalismo islâmico, mas essencialmente porque o é, não no coração e conforto da Europa, mas em Oran, na Argélia, em plena frente de guerra, onde vive e até 2016 escreveu para o argelino Le Quotidien d’Oran. A posição do jornal, mais o teor das crónicas de Daoud, valeram-lhe um corte na publicidade institucional e o lançamento no facebook de uma Fatwa condenando Daoud à morte.

Se o papel de um cronista é fazer-nos pensar, questionar o que damos por adquirido, Kamel Daoud não desilude. Três exemplos: a sua crónica no Le Quotidien d’Oran, a 12 de Julho de 2014, com o sugestivo título “Ce pourquoi je ne suis pas solidaire de la Palestine”; a sua posição relativamente à colonização francesa da Argélia, que qualifica de uma violência e de um crime perpetrados contra o seu país, ao mesmo tempo que considera inútil um pedido de desculpas do Estado francês porque não acredita na responsabilidade colectiva, menos ainda na dos franceses do presente relativamente a acto cometidos por outros franceses nas décadas de 50 e 60; a crónica da última sexta-feira na Le Point, na qual diz, sobre Éric Zemmour (ensaísta francês com muito sucesso em França devido às suas posições excessivamente conservadoras e nostálgicas de uma França grandiosa), que mais que o censurar em vão é preciso escutar Zemmour, percebê-lo, compreender o poder de sugestão da sua mensagem e então aí, nessa altura, ser capaz de o combater. Porque Daoud não grita, antes prefere atacar, na guerra que é a sua, a intelectual, e vencer.

Foi aqui que decidi escrever sobre ele. Foi enquanto assistia à vitória de Bolsonaro no Brasil, à histeria dos que o deviam compreender e explicá-lo em vez de alimentarem a irracionalidade que conduz as massas para o colo de personagens como a do próximo presidente do Brasil, que decidi escrever sobre Daoud. Foi quando assisti a cerca de 100 milhões de eleitores entalados entre a extrema-direita de Bolsonaro e a extrema-esquerda de Haddad, quando me apercebi que a grande maioria dos comentadores portugueses se refugiam na ilusão das boas intenções de uma certa esquerda, como se Maduro não existisse na Venezuela, em vez de tentarem perceber que os brasileiros votaram contra a corrupção e o falhanço económico e político do PT, foi nesse momento que decidi escrever sobre Kamel Daoud.

Porque Daoud é um exemplo, não só de coragem, mas de como é possível confrontar os problemas. De os analisar, percebê-los e de forma racional forçar os inimigos das democracias liberais a exporem publicamente as suas incongruências. Que são muitas como a história bem nos demonstra. Bolsonaro, Maduro, Trump, Pablo Escobar, Farage, Marine Le Pen têm de ser confrontados com inteligência. O que exige coragem, trabalho e honestidade, que pressupõe humildade. Aquilo que precisamos encontra-se vivo em Oran, na Argélia. É por este motivo que vos apresento Kamel Daoud.

Advogado

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