Quase ao final do primeiro canto da Odisseia, e após um pedido de Penélope para o aedo cantar outra canção, já que aquela que ele cantava a entristecia por fazê-la pensar no seu marido ausente, o seu filho, o jovem Telémaco, insurge-se com a sensibilidade da mãe e o pedido e diz-lhe: «agora volta para os teus aposentos e presta atenção/ aos teus lavores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas/ que façam os seus trabalhos. Pois falar é aos homens/ que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta casa

Imaginemos, por um segundo, que um filho terá, de facto, dito isto a sua mãe. Ou se não nos apetecer tal exercício, imaginemos que Homero, o putativo autor da Odisseia, escreveu estes versos oito séculos a.C. porque podia, era credível, isto é, à data, um filho diria isto a sua mãe. Portanto, ficámos a saber, em quatro versos apenas, que há quase trinta séculos, a mulher não tinha opinião, nem poder, nem propriedade, e estava subordinada ao homem: pai, marido, filho.

Substituamos a Odisseia pel´A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, que trouxe aqui, no meu primeiro texto para o Observador, para escrever sobre o insustentável neo-puritanismo Woke e a fragmentação social que gera, e os seus custos políticos. Em vez de Penélope, em Ítaca, no século oitavo a.C., temos Hester Prynne, nos arredores de Boston, no século XVII, condenada por adultério, do qual resultou uma filha, mas também por não se arrepender nem confessar o nome do pai da criança, e acima de tudo por ser independente: primeiro do marido ausente que a enviou de Amsterdão para a Nova Inglaterra sozinha; depois do pai da sua filha Pearl; das regras morais e religiosas da comunidade; do juiz a quem recusa entregar a filha; e da humilhação imposta, materializada na letra A, que deveria ser um sinal da sua vergonha, mas que, embelezada com bordados de detalhes riquíssimos, converte num insubmisso emblema amoroso.

Imaginemos, por um segundo, que o juiz de A Letra Escarlate produz jurisprudência para o mundo contemporâneo. Ou se não nos apetecer tal exercício por ser anacrónico e desfasado da realidade, imaginemos que um juiz do Supremo Tribunal norte-americano redige um projecto de decisão para revogar uma lei aprovada em 1973. Esse projecto de decisão tem como suporte a Constituição. Ou melhor, a interpretação «originalista» da Constituição. Isto é, a interpretação da Constituição feita de acordo com o significado público que teria à data da legislação que produziu. E socorre-se ainda de outros estudiosos da lei que cita para enformar o pensamento. Imagine que nove dessas citações são de um livro de Matthew Hale, History of the Pleas of the Crown, um jurista inglês do século XVII, portanto, contemporâneo da ficcional Hester Prynne, conhecido pelo Hale Warning: uma advertência para os jurados contra as acusações de violação, pois em seu entender eram fáceis de produzir. Para Hale, a mulher, por advir da costela de Adão, não tinha existência per si, seria sempre uma extensão do pai ou do marido. Como consequência, por exemplo, e segundo Hale, também nunca poderia ser violada pelo seu marido porque isso significaria que ele se violava a si mesmo, e isso seria, claro, um perfeito disparate. Pior. Mattew Hale não só mandou executar duas mulheres por bruxaria, como foi, sem o saber, o precursor dos julgamentos das Bruxas de Salém. Ah, e quando falo da mulher, refiro-me a mulheres brancas, já que as negras não contavam como pessoas mas como propriedade, a humanidade não era multi-racial.

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Agora pense que a revogação daquela lei de 1973, sustentada daquela forma, permitirá a criminalização do aborto. Estar e deixar de estar grávida não mais fará parte da sua privacidade, nem será uma decisão sua, passará a ser matéria pública e moral.

(No Estado do Texas, por exemplo, as restrições ao aborto foram reforçadas a partir de 1 de Setembro de 2021, e a actual amplitude legal já permite que as mulheres sejam interrogadas e/ou privadas da medicação adequada em caso de aborto espontâneo enquanto se afere a espontaneidade da perda, tal como os casos de gravidez ectópica geram hesitações provocadas pelo emaranhado legal, e isto a despeito de uma septicemia que as mate a qualquer momento. No Estado do Louisiana, uma nova lei atribui «integridade pessoal», «personalidade», a partir do momento da fertilização e este princípio permitirá a acusação de homicídio a quem aborte.)

Quando uma mulher não tem direito sobre o seu corpo, quem tem? Quem decide? E decide o quê sobre esse corpo? Sob que égide? De que religião? De que moral? Em benefício de quê ou de quem? Pode-se obrigar uma mulher a prosseguir uma gravidez indesejada, logo, pode-se obrigar uma mulher a ter um filho. A ser uma barriga, não de aluguer, mas de obrigação para algo ou alguém, como num pesadelo acordado de The Handmaid´s Tale, da excelente Atwood: novas Agar para poderosas Saras e poderosos Abraão.

As justificações apresentadas para a revogação desta lei, a saber, a Constituição não fazer qualquer referência ao aborto e haver uma inquebrada tradição de proibição do aborto desde o século XVII, abre a porta para a perda de outros direitos também eles conquistados depois de um fio inquebrado de séculos em que não existiram. O direito da mulher aos próprios filhos. À propriedade. Ao voto. Aos casamentos inter-raciais. Ao planeamento familiar. Aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. A humanidade multi-racial.

Não foi há muito tempo: antes do 25 de Abril, a minha mãe, quando viajava, precisava da autorização do marido em papel de vinte e cinco linhas, reconhecido no notário. Isto não é lá com eles, os americanos. É connosco. Nem foi só no século VIII a.C. nem no século XVII, nem numa distopia ultra-religiosa do século XX. Isto não é só literatura. É a vida e é hoje. À onda ultra-conservadora que varre o ocidente da Hungria aos Estados Unidos e diz à mulher «aqui quem manda sou eu!», convém responder curto e adolescente: só que não.

A autora escreve segundo a antiga ortografia

[in Odisseia, Canto I, 356-359, tradução de Frederico Lourenço]