A mais recente entrevista que o Dr. Fernando Araújo concedeu à RTP foi a melhor que até hoje, nas funções de Diretor Executivo (DE) do SNS, já deu. Foi mesmo excelente porque foi política e deixou claro que o seu lugar é político. De “técnico” nada tem, como nada do que disse teve alguma coisa de técnico. Em tempos escrevi, neste jornal, que a “transformação do cargo de diretor-executivo num cargo político é sublinhar a inutilidade da direção-executiva. Na CNN o diretor-executivo apareceu vestido de político e errou ao tê-lo feito”. Afinal quem estava enganado era eu. Ele não errou, mostrou-se de acordo com a forma como foi concebido e fá-lo progressivamente melhor. O diretor-executivo do SNS é um cargo político, para tomar decisões políticas e acabará com um acervo de decisões que irão para lá das suas competências redigidas em termos de lei. Temos dois ministros da saúde e o segundo, o DE, serve para cobrir as larachas do primeiro, o “propiamente dito” (p.d.). “Não tenho como certo que se encerre”, diz o primeiro, “está encerrado”, diz o segundo. Consoante as circunstâncias, enquanto um vai aplicando o dourado na pílula que o outro nos obrigará a engolir, lá irão trocando de papel.

Em tempos, noutro local e quando ainda acreditava na limitação de capacidades jurídicas do DE, escrevi que o Dr. Fernando Araújo não teria competência para mandar encerrar maternidades com pouca produção de partos. Na verdade, se formos legalistas num país onde a legalidade é uma conveniência que se aproveita, não teria. Mas como o DE, ministro dois, está acima da IGAS, da DGS, da ERS e dos tribunais de que nem se lembrou, pode mesmo fazer o que os ditames políticos determinarem, quando ser jeito.

No mesmo artigo, o último que o tempo e a paciência me deixaram escrever para o Observador, dactilografei que o DE só deveria dar nova entrevista quando tivesse alguma coisa para apresentar. Fiz mal e justifico-me. Sendo político, fala exatamente para não dizer nada de concreto, mas para deixar pinceladas de preocupações generalistas com que uma parte da audiência acaba por concordar. Vamos aos que interessa.

Esteve bem quando demonstrou que os planos para as urgências de pediatria e obstetrícia são o menos mau possível, não deixando de serem maus planos, acabados por decisão política e até contrariando alguns dos pareceres colhidos. É óbvio que está a ser gerado um incómodo para as famílias e crianças que precisarem de assistência pediátrica urgente e tiverem de vir a Lisboa. É evidente que no caso de Torres Vedras houve uma mistificação da realidade, bem ao jeito dos políticos, quando se diz que a dita urgência fecha de noite porque não responde a casos graves, como se não houvesse casos graves de dia…E, para sermos honestos, o argumento de que estas propostas salvaguardam a qualidade é falsa. A qualidade em saúde depende de haver efetividade, eficiência, gestão de riscos e satisfação. O modelo será, não duvido, o único possível para que se garanta efetividade e eficiência com os meios disponíveis, mas ainda não se sabe se será capaz de garantir segurança dos doentes e já se percebeu que não gerará satisfação. Mas não haveria outra solução quando não há médicos. Foi a decisão política possível no entender do ministério da saúde, digo, dos ministros da saúde.

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Outra coisa interessante que pudemos tirar da entrevista foi a de que há uma legítima preocupação do DE para com a captação e fixação de pessoal para o SNS. Percebeu-se que não faz ideia de como captar e fixar pessoas sem lhes pagar melhor, por mais voltas que tenha dado ao assunto, no que converge com o Dr.Pizarro, o p.d.. Este último teve particular graça quando achou que havia greve de médicos por os velhos esculápios estarem com receio de voltarem às urgências. Paguem bem melhor e nem imaginam o que este sexagenário que aqui vos escreve ainda seria capaz de fazer.

Esteve menos bem, outra vez o DE, quando se agarrou ao modelo das Unidades Locais de Saúde (ULS) como a única solução para a integração de cuidados primários, hospitalares e continuados. Note-se que eu sou um acérrimo defensor do conceito de ULS, mas sei que a sua criação no papel não resolve nada se não houver uma mudança estrutural de toda a organização do SNS. Subscrevo o conceito, enunciado por um dos ministros, neste caso o DE na RTP, de que o SNS não deve ser constituído por organizações concorrenciais, mas sim por instituições cooperantes e sinérgicas. No entanto, como em tudo, a criação de ULS, “a metro” e em todo o lado, não resolverá nada de per si. Por exemplo, a criação de ULS obriga ao financiamento por capitação e ao recálculo de riscos de saúde em cada contexto regional. Já foi feito?

Saúdo a revelação que o Dr. Fernando Araújo fez na Assembleia da República (AR), de que as Administrações Regionais de Saúde (ARS) vão acabar até ao final de 2023. ARS e Direção Executiva, em simultâneo, não fazem sentido. Até porque, até hoje, tudo o que a Direção Executiva fez poderia ter sido feito pelas ARS. Quer isto dizer que a Direção Executiva, para fazer sentido, não pode coexistir com as ARS e talvez se devesse ter começado por reformular a estrutura do SNS antes de criar a Direção Executiva. Ah, mas então, se o DE faz o que o governo deveria fazer, governar, talvez fosse melhor ter começado por “contratar” um bom ministro em vez de dois. É só uma ideia. No limite, a criação da DE é a assunção de que as ARS não serviam, mas também é a constatação que sem dois Pizarros, um Pizarro e um Araújo ou dois Araújos, não vamos lá. Por acaso até desconfio que com um Araújo ou equivalente, sem desprimor para um Pizarro, mais uma boa estruturação territorial em ULS e ACES, o regresso ao malquisto modelo das sub-regiões de base concelhia, a coisa fazia-se. Houvesse dinheiro… E os secretários de estado, esses mesmos, servem para ajudar os ministros, não é?

Foi bom quando o DE admitiu que o SNS precisa de mais dinheiro. Os ministros, o p.d. e o das finanças, não podem dizer estas coisas. Esteve mal, ainda o DE, quando se agarrou à ideia de que o problema do SNS é organização, mesmo sem ter dito a que nível. Não é, é falta de meios financeiros, humanos e materiais. O problema também não é de falta de planeamento. Há planos, só que não são executados por falta de capacidade para a sua execução. Disto isto, aproveito para lembrar que Portugal está sem Plano Nacional de Saúde desde 2020, o que também não é grave porque desde 2016 quase nada tem sido executado e já nem seria mal se pegassem nas metas por cumprir. Sobre estas matérias teremos de voltar aos ministros p.d., aos da governação social-comunista e socialista maioritária. Os dois que agora estão no pelouro, um na João Crisóstomo e outro num anexo do Hospital de S. João, só serão culpados se deixarem o plano atrasar-se ainda mais.

É evidente, como o Dr. Fernando Araújo reconheceu na AR, que tem havido um desencontro entre a procura de cuidados de saúde que tende a crescer e a oferta que tende a diminuir. Há mais utentes, porque há mais doentes, há mais utentes sem médico de família em locais chave, há menos médicos, enfermeiros e técnicos no SNS, há desgaste estrutural e de material e é isto que temos de procurar resolver. Não será fácil, não será rápido e será caro. O ministro que tiver mais oportunidade de falar com o Dr. Medina, seja o p.d ou o DE, deverá lembrar-lhe os custos da eficiência em saúde.

Reconheceu, mais uma vez o DE, com honestidade, que a transição do modelo PPP para EPE, nos hospitais onde isso aconteceu, foi mal feita. Foi péssima. “Péssima”, não disse, mas foi. Admitiu que houve falta de ponderação e bom senso, de que resultou diminuição na qualidade do serviço prestado, com o consequente prejuízo dos utentes. Bicada para a p.d anterior.  Mas, devo repetir sempre a mesma coisa, a não continuação das PPP resultou de preguiça do Estado que não quis rever os contratos em vigor. Com a contratação estabelecida, as PPP só eram viáveis à custa de enormes prejuízos que os financiadores sustentaram e que já eram insustentáveis. Novas PPP, só com contratos mais justos e equilibrados, necessariamente mais dispendiosos, o que o Estado não quis negociar.

Quanto aos administradores dos hospitais, foi dito que lhes faltaria liderança. Talvez, em alguns casos. Não se nasce líder, aprende-se a liderar. Mas nessa profissão, como em outras que servem o Estado, com o que lhes pagam não se pode exigir muito mais. São um conjunto de pessoas muito esforçadas, na sua maioria bem formadas, sujeitas a pressões inconcebíveis, entalados entre a lealdade ao governo que os nomeou e os interesses dos doentes que a instituição serve, bem no meio dos dilemas entre defender o “seu” pessoal ou os interesses dos ministros que vão passando pela João Crisóstomo (antes do DE de S. João, eram só os p.d ). Acresce que incorrem em responsabilidades pecuniárias pessoais, mesmo que nenhuma responsabilidade lhes assista, pelo que não será fácil, nunca foi, encontrar voluntários para dirigir instituições do SNS.

O Dr. Fernando Araújo, além de médico competente é um “bem intencionado”. Digamos que boas intenções, não sendo sinónimos, equivalem-se neste caso. Mas as suas boas intenções não lhe deveriam permitir dizer que o SNS tem qualidade. Já não tem. Não, os problemas do SNS não são tempos de espera maiores “aqui e acolá”. Tem pontos, locais, atos, profissionais com qualidade intrínseca e demonstrada. Mas a qualidade do SNS não é uniforme, no tempo e no espaço, havendo má prática em muitos lugares e com o consentimento de quem dirige o SNS. Que remédio, pois se o ótimo é inimigo do bom, mas não vale disfarçar o indisfarçável. Os tempos de espera a que sujeitamos os nossos utentes, mais de anos aguardando consultas, mais de seis meses para ter uma TAC ou ser operado, mais de um mês para iniciar quimioterapia, não são boa prática. E, desiludam-se os que acorrem a serviços fora do SNS, pagando do seu bolso para lá do que pagaram em impostos, porque os privados poderão ser mais céleres, quando são, aportarem melhor aspeto visual e conforto, mas nem por isso serão sempre mais efetivos, eficientes ou seguros na resolução de problemas clínicos. O Dr. Fernando Araújo não disse, mas falta-nos muito mais regulação do que planeamento ou organização. Percebe-se o seu rebuço. A ERS é tão independente como ele, tão longe do governo que até tiveram de descobrir mais um médico do Porto para que não houvesse qualquer risco de centralismo na capital.

O Dr. Fernando Araújo é um homem Bom. Não é coisa pouca. Teria sido um bom ministro da saúde, eu escrevi isto em momento próprio, e já só é um bom Diretor Executivo por deixar claro que o seu papel é completamente desnecessário a não ser para servir de testa de ferro do Dr. Manuel Pizarro. Só um homem Bom aceitaria ser nomeado, sem concurso público, para um papel tão ruim.