Em matérias de arte é comum sentir satisfação em chamar ignorantes ou em ter pena das pessoas que não leram muitos livros, viram muitos quadros ou filmes, ouviram muitas músicas, ou visitaram números maciços de catedrais góticas. A ideia é a de que acima de uma certa quantidade de experiências desse tipo se passa a ser um animal diferente, e melhor.

Onde é que as pessoas que tiveram tantas experiências artísticas põem tudo aquilo que leram, viram e ouviram? Diz-se normalmente que foi na memória. As catedrais góticas, por exemplo, ter-se-ão transformado em memórias de catedrais góticas. Mas isto suscita uma segunda pergunta: o que é que essas pessoas fazem às memórias de tantas catedrais? Uma segunda resposta frequente é: põem-nas em prática.

A resposta parece dizer qualquer coisa, mas não quer dizer muito. Parece insinuar que as acções das pessoas com memórias artísticas são diferentes das acções daqueles sem elas; e que acima de um certo número de catedrais começamos a comportar-nos melhor. Ignora porém o facto de muitas pessoas já serem decentes mesmo antes da sua primeira catedral gótica; e de a maior parte poder nunca chegar a sê-lo, mesmo depois de muitas.

Sobre arte, a doutrina mais comum tem duas formas: ou é como a opinião vulgar sobre vitaminas (faz bem, e quanto mais melhor) ou é como a opinião vulgar sobre antibióticos (faz bem, mas não se pode abusar). A segunda forma é mais inócua, mas ambas as doutrinas contêm inflexões preventivas. Anunciam a intenção de se ser bombardeado com arte para o resto da vida, e de se passar o resto da vida a bombardear os outros com os relatos das nossas experiências de guerra.

Não se conhece no entanto ao certo qual possa ser o efeito de tantas catedrais. Suspeito que à maior parte das pessoas que estiveram em muitas tudo acabe por se parecer com uma única, onde possivelmente nunca estiveram; e também não sei exactamente quais são os bichinhos que tanta experiência junta iria exterminar.

Um escritor famoso, que em novo tinha visto muitos quadros, na parte final da vida só se lembrava de uma parede amarela de um certo quadro. Ia vê-lo constantemente. Quando pensava em quadros pensava nesse quadro. Falava disso a torto e a direito. Não precisava de ver mais nada. Pode bem dar-se o caso de a única vantagem de termos muitas experiências artísticas ser a de extinguir a vontade de passar o resto da vida à procura de mais arte. Pode dar-se o caso de a arte ser aquilo que torna a arte desnecessária.

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