Quando olho para as crianças de de 3, de 4 ou de 5 anos, e para o modo como elas são tão delicadas a apanhar pequenos aspectos de todos os dias como quem segura uma borboleta, e discorrem sobre eles, com rasgos de genialidade; quando olho para elas e sinto que, duma forma poética, ligam aquilo que aprendem, sem que se dê por isso, com tudo o que sentem, e formulam pensamentos que nos param e viram do avesso e nos comovem, e nos reencontram com o espanto, e nos põem a pensar; quando guardamos uma história pequena, quase mínima, que nos contam, e, duma forma sintética — e luminosa, mesmo — percebemos como elas são atentíssimas e intuem tão longe que quase parece que adivinham, todos nós, sem o dizermos, acabamos a reconhecer que a sabedoria é como as borboletas. Poliniza. Colora. Voa. E tem ciclo de vida; breve. Que se renova. E faz parte de nós. Mas se crianças pequeninas são sábias, por onde se esvai, depois, a sabedoria com que nos tocam? Que voltas acaba por ter a ponto de, tantas vezes, parecer-se extraviar ou, mesmo, perder?

Às vezes, o mais fácil para mim, é imaginar que, depois dos 5, a escola, de tanto as “normalizar”, estraga a sabedoria das crianças. Porque não as escuta; como devia. Ou porque não aproveita as suas asas para que voem. Mas talvez não seja por aí que acabemos por perder as asas e deixar de voar. E nos tornemos – todos – sem dar por isso, apanhadores de borboletas em vez de replicarmos, com elas, o seu voar. A verdade é que quando, depois, vou procurar pessoas que sempre que se fala com elas nos põem a pensar, mesmo que o façam sobre os pormenores sem importância; pessoas que nos rasgam janelas e nos levam, pelo nosso pé, a ver mais longe; ou quando, numa história que nos contam, nos tocam, ao de leve, e nos põem a voar; e quando dou conta que essas pessoas são “velhas”, mas que parecem ter descoberto uma fórmula que as faz ter no olhar o brilho da juventude; eu pergunto: o que é que se passa entre a altura em que a sabedoria parece natural, como as asas das borboletas, e os momentos em que ela resiste só nas pessoas que quanto mais velhas se tornam mais jovens conseguem ser? Por onde se esvai a sabedoria? E quem a estraga? Foi por isso que tentei fazer o caminho ao contrário. E ir à procura do que são feitos os sábios.

É estranha a relação dos sábios com a memória. Na verdade, não citam nem páginas nem autores de supetão. Não têm a inquietação dos curiosos nem o desassossego dos perguntadores. Mas o seu olhar vai mais longe e perscruta. E vê. Sem perguntar! Mas, acima de tudo, é esquisita a forma como não se agarram às arestas das coisas nem às farpas dos dias. E têm no esquecimento das pequenas maldades (o esquecimento dos sábios a que — há quem diga — se pode chamar bondade) uma forma única de estar. Não as ignoram. Não as desprezam. Não fazem por não as esquecer. Mas é como se pensar sobre o que vivem parecesse nunca deixar com que se conspurque o amor à vida e a lealdade para com tudo aquilo que se deseja conhecer. Que lhes dá a tranquilidade dos que têm pressa de saber. E, só por isso,  vivem a vida devagar.

Os sábios são ingénuos. Não crédulos, se faz favor. Ingénuos! Porque desconsideram os preconceitos. E não deixam que eles se tornem pegajosos. Nem os transformam num despojo com que teçam agruras que os inquinem. É por isso que os sábios escutam. E são atentos e abertos. E, só por isso, são ousados.  E alegres!

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Às vezes — reconheço — olho e volto a olhar, e parece-me que a sabedoria, num tempo de coisas descartáveis — de mentores, de seguidores, de comentadores ou de tutoriais — talvez não mereça atenção. Às vezes — talvez nos dias maus — chego, mesmo, a perguntar se a sabedoria passou de moda. Porque nós procuramos soluções. E os sábios “limitam-se” a perguntar. Porque nós temos pressa de resolver. E a sabedoria requer despojamento; e exige, sobretudo, “o seu tempo”. E nós distraímo-nos com tudo. Olhamo-nos pouco. E alimentamos esta tolice de imaginar (mesmo sem observar aquilo que sentimos) que, vivendo de forma mais acelerada, vivemos melhor. Como se gula e degustar fossem quase a mesma coisa. E os sábios vêem-se nos outros; e vêem-nos em si. E – será por isso – distinguem, intimamente, olhar, observar e ver. Ou, talvez, não seja por nada disto. E o desinteresse com que vivemos os sábios se deva a que, só porque são sábios, eles convivam com parcimónia com o tamanho de tudo o que não sabem. E vejam a ignorância como uma oportunidade. Enquanto nós a vivemos como um sufoco. Talvez porque quem não sabe o que não sabe ande mal informado.

A única coisa que guardamos dos sábios — sem perceber, claro — é esta ideia de que não há perguntas inocentes. Eu sei que, às vezes, os sábios desconcertam: como se pode ser ingénuo, no que se pensa, não sendo inocente, no que se pergunta? Mas o que é que tem de mal perguntar com a intenção de perguntar? Perguntar só mesmo porque se quer saber? Perguntar mesmo quando já se tem uma resposta? Perguntar, perguntar e perguntar? Os sábios percebem que o futuro de cada resposta é uma pergunta. E nós, mal aconselhados, insistimos que é com respostas que, de horizonte em horizonte, se chega ao céu. Indo por aqui — reconheço — as perguntas dos sábios são inocentes. E as nossas, não tendo “o céu” das borboletas no horizonte, serão ardis.

Por isso, não: não há perguntas inocentes. Uma pergunta tem sem sempre uma intenção! E move-se pelo desejo de escalar um planalto mais e procurar nele a surpresa de outros pontos de vista. Por mais que o acto de perguntar seja inocente, claro. Porque perguntar é escutar. Porque as perguntas são os gatafunhos dos desejos. E porque elas são passageiros dos sonhos. Aliás, como podia ser doutra maneira? Como podia uma pergunta lá ser senão inocente, quando perguntar é escarafunchar na curiosidade e aprender o aprender? Aprender com a vida, mais precisamente. Estranho é crescer a imaginar que ela tem mais a aprender connosco do que nós consigo. É, sobretudo por isso – acho eu – que, de tantos nos enchermos de respostas, alguns de nós ora caminhamos para sabidos; ora, de tão iludidos, nos tornamos sabichões. E os sábios são… sábios. E, por aquilo que parece, dão ares de quem pouco precisa doutra coisa para ser. Para além de serem sábios. Simplesmente.

Mas, sendo assim, o que é que se passa entre a altura em que a sabedoria parece natural, como as asas das borboletas, e aquela que resiste só nas pessoas que se tornam jovens? Porque é que ela se “perde”? Porque é que a sabedoria parece ter só o ciclo de vida duma borboleta? Porque não vivemos a vida devagar. Porque não damos o tempo que as perguntas exigem para se ver mais longe e perscrutar. Porque não escarafunchamos na curiosidade. Porque não as aceitamos como os gatafunhos dos desejos. Porque confundimos olhar, observar e ver. Porque criamos desencontros com aqueles que amamos, que se aprofundam porque eles renunciam ao seu olhar sábio sobre nós, e nós ao nosso sobre o seu. Porque nos ficamos por sentimentos subtis, que não se dizem, e por perguntas semi-silenciosas, que não se fazem. Porque nos atolamos em preconceitos. E nos agarramos às arestas das coisas e às farpas dos dias. E, por tudo isso, deixamos de ser planaltos, uns para os outros. E perdemo-nos de vista. É, só por isso, que, podendo ser sábios, nos transformamos em borboletas zangadas com as asas. E nos perdemos da juventude. Sempre que não as polinizamos com o seu voar.