É muito curiosa a questão da coerência política. Não a dos políticos, mas a do cidadão comum, pelo menos aquele a quem a política mais ou menos interessa. Os políticos têm a vida tão difícil, são obrigados a tantas posições, que, fora uma ou outra área muito particular, variando segundo as características pessoais, lhes resta pouco espaço para a coerência, se a sobrevivência própria os preocupa. Para o homem da rua, pelo contrário, a coerência parece coisa facilmente atingível: não ter de tomar decisões políticas, como geralmente não tem de as tomar, ajuda, e muito. E isso permite-lhe, de resto, a censura fácil aos políticos.

A questão, para aqueles a quem a coerência política importa, põe-se, como se diz, existencialmente, isto é, é vivida como uma questão que ameaça fazer-nos entrar em conflito com nós mesmos, por mais avessos a dramatismos que sejamos. Tal ou tal mudança de opinião mais substantiva representa uma descontinuidade absoluta, ou, diferentemente, é detectável uma continuidade, uma coerência, que lhe subjaz? As mudanças de posição representam uma alteração radical das tendências, ou princípios, que governam o nosso entendimento do que deve ser a boa sociedade, ou, pelo contrário, significam apenas uma variação possível dessas tendências, ou princípios, ditada por razões exteriores ou interiores? Pode ser que estas questões pareçam demasiado abstractas. Talvez nada disso importe, na prática, por aí além, ou importe apenas ao próprio, quase intransmissivelmente. Mas, somando tudo, o melhor talvez seja levá-las mesmo a sério.

Há um caso clássico no capítulo que me tem entretido nos últimos tempos: o da relação entre os dois principais poetas do primeiro romantismo inglês, Wordsworth e Coleridge, com a revolução francesa. Quaisquer que sejam as diferenças entre a evolução de um e de outro, há sem dúvida um ponto comum. Tanto Coleridge como Wordsworth partiram de um entusiasmo (é a palavra certa) muito real pela revolução, acabando por mais tarde celebrar a clarividência de Burke, que havia previsto o desenrolar futuro dos acontecimentos. O caso de Wordsworth é particularmente interessante de seguir, já que no seu longo poema autobiográfico, O prelúdio, revisitou os seus sentimentos antigos, pondo-os face a face com os que ao escrevê-lo já experimentava. “Bliss was it in that dawn to be alive, / But to be young was very Heaven!” (os participantes de Maio 68 fazem muitas vezes seus sentimentos afins) convive com a rejeição (burkeana) das consequências da revolução.

Pode bem acontecer que a evolução das posições de Wordsworth e Coleridge represente algo como uma descontinuidade absoluta e uma alteração radical das tendências, ou princípios, que governam o entendimento da sociedade. E pode acontecer que não, que estejamos no domínio de uma certa continuidade implícita, no campo das variações possíveis a partir de uma identidade de fundo. A exemplo, exactamente, de Burke, que, a partir dos mesmos princípios, defendera a revolução americana e condenara a revolução francesa. Em todo o caso, para responder convenientemente à questão seria necessário esclarecer, entre outras coisas, a compatibilidade da futura concepção orgânica, tipicamente conservadora, da sociedade de Wordsworth e Coleridge com a adesão inicial aos princípios da revolução. O que ultrapassa largamente o meu modesto saber no capítulo e a dimensão de um artigo de jornal, embora me incline a pensar que tal compatibilidade existe.

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Para escapar a estas dificuldades, há sempre o recurso à experiência própria, conhecida por dentro. O que, no meu caso, corresponde obviamente a um menos nobre exemplo do que os de Wordsworth e Coleridge. Desgraçadamente, o meu espírito não é merecedor de uma fenomenologia que recapitule os momentos da sua evolução. E, além disso, o género “História das minhas ideias políticas” deve ser reservado a quem teve ideias políticas. Ora, tirando quatro ou cinco princípios muito gerais, resultantes do contacto com o espectáculo assombroso da capitulação muito generalizada face à impostura comunista da defunta União Soviética e de outros mais orientais faróis do socialismo, e, bem mais tarde, com muitas reacções por essa Europa fora ao 11 de Setembro em que o ódio nihilista ao Ocidente se manifestou em todo o seu esplendor, o meu balanço na matéria é magro. Conheço, por interesse e dever profissional, muito do que a humanidade produziu como reflexão no capítulo, mas, fora da confortável distância que esse tipo de conhecimento assegura, a flexibilidade foi mais a regra do que a excepção. Não me encontro, portanto, particularmente bem colocado para, a partir da vivência própria, falar sobre coerência e incoerência nestas matérias. Mesmo assim, e correndo o muito sério risco do ridículo, vou fazê-lo, e pegando propositadamente no mais teratológico dos exemplos à minha disposição.

Em 1976, do alto da imensa sabedoria dos meus dezasseis anos, publiquei, numa revista, o meu primeiro texto impresso. Sob o título pomposo “Teses para a inversão dialéctica da cultura”, e depois de uma citação de Hegel (“Sou forçado a admitir que tudo continua”), tratava-se de uma imitação descarada do Guy Debord da Internacional Situacionista, acrescida do mau gosto (impossível em Debord) de citações incongruentes de estrelas do pensamento muito na moda à altura (Sade, Bataille, Gilles Deleuze e mais Sade, muito Sade). A ideia – tanto quanto é possível falar de uma relação entre o fluxo verbal das “teses” e uma qualquer actividade construtiva do espírito – era a da necessidade urgente de sacralizar o mundo através da anulação sacrificial (Bataille oblige) da distinção entre vida privada e vida social, algo que só se obteria através da des-sacralização da arte e da afirmação do desejo da revolução como expressão individual da revolução proletária. Perceba quem puder… Graças a Deus, e passado muito pouco tempo, eu próprio deixei de julgar que percebia, o que constituiu um progresso indiscutível em direcção a modos de pensar pelo menos mais claros.

E no entanto… Mais ou menos por acaso, reli no outro dia esta infantil prosa adolescente e, sem que me pareça que por efeito de uma excessiva benevolência, algo em mim foi sensível a uns milímetros de coerência entre o delírio adolescente e o que depois a vida me pôs, pouco a pouco, a pensar. Não me passa pela cabeça, é claro, sacralizar sacrificialmente o mundo, o que quer que isso queira dizer, ou explorar o desejo de revolução como expressão individual da revolução proletária (pobre “proletariado”, que, existente ou não existente, servias para tudo e mais alguma coisa). Mas naquela salgalhada encontrava-se subentendida uma vontade de liberdade expressa ao modo confuso e dogmático próprio à adolescência. De uma certa maneira, é-me impossível evitar pensar que, no meio do disparate e do sem-sentido gerais, aquilo constituia uma variação possível, embora extravagante, do desejo de viver numa sociedade livre.

Avisei que o exemplo seria teratológico – e o exemplo, além do seu ridículo, foi de facto teratológico. Mas posso-me felizmente encontrar exemplos menos grotescos e mais tardios. Até certa (e já longínqua, é verdade) altura, pensei que o que se chama “esquerda” era depositária da principal tradição de liberdade e de garantia da democracia. A pouco a pouco, no entanto, foram-se instalando dúvidas diversas no meu espírito. Não falemos sequer da extraordinária tolerância para com o totalitarismo comunista. Fiquemo-nos por certas características dos mais pactos socialistas democráticos. Uma leitura atenta dos seus escritos e uma observação das suas reacções políticas mais habituais, mostra algo de inquietante: a suposição praticamente constante da existência de uma legalidade maior do que a da simples legalidade formal da democracia. Isso vê-se todos os dias na tendência muito palpável em afectar a direita de um índice de ilegitimidade irredimível (a não ser que a direita seja de esquerda). Ora, não há reciprocidade nessa atitude. Nunca a direita democrática (em Portugal, por exemplo) encara a esquerda através de um tal prisma.

A atitude face à democracia é um sinal seguro da atitude face à liberdade. E é difícil evitar a conclusão que hoje em dia a direita se encontra mais próxima de defender a liberdade (não imaginando nunca uma legitimidade maior do que a legitimidade democrática) do que a esquerda, ou pelo menos o grosso da esquerda. A ser verdade isto, há alguma flagrante incoerência em transitar da esquerda para a direita, quando o motivo que nos ligava à segunda era a convicção de que esta representava a tradição da liberdade? Não consigo vislumbrar, francamente, o mais ténue argumento, excepto alguns lugares comuns da cartilha marxista, para sustentar a existência de tal incoerência.

O tema central deste artigo era o da coerência política. Por facilidade, admito, fui levado a acabar com a vexatória questão esquerda/direita. Mas não convém cair no fetichismo que a oposição tende a promover. Os elementos fundamentais da coerência política remetem para estratos de pensamento bem mais profundos, simbolizados pelo conflito sempre possível entre aquilo em que espontaneamente acreditamos, ou julgamos acreditar, e o caminho que o nosso pensamento tende a seguir, algo que as aventuras da oposição esquerda/direita só muito imperfeitamente dá a ver. O exemplo de Wordsworth e Coleridge em relação à revolução francesa ilustra-o. E cada um de nós, como o autor destas linhas, queira-o ou não, vive-o à sua diminuta escala, quanto mais não seja como desafio para se perceber a si mesmo..